O Psicopata Que Não Sabe Dizer Não e a Recusa do Psicanalista
A psicanálise oferece uma
perspectiva profunda para analisar a dinâmica do comportamento psicopático,
especialmente no contexto de indivíduos que apresentam dificuldade em dizer
"não". Embora os psicopatas sejam frequentemente associados à manipulação,
falta de empatia e comportamento antissocial, há casos em que eles demonstram
comportamentos inesperados, como a incapacidade de recusar demandas ou impor
limites. Essa aparente contradição pode ser analisada a partir de conceitos
psicanalíticos e suas raízes inconscientes.
O Psicopata e a Estrutura
Psíquica
Na psicanálise, o
psicopata é frequentemente associado à ausência de um superego funcional, que é
a instância psíquica responsável por mediar as demandas do id (os impulsos
primitivos) e do ego (o senso de realidade).
A Ausência de Conflito
Interno e o Superego
Sigmund Freud, em O
Ego e o Id (1923), descreve o papel crucial do superego como a instância
psíquica que regula os impulsos do id e mantém o ego em conformidade com as
normas sociais e morais. No entanto, no psicopata, observa-se uma ausência ou
disfunção significativa do superego. Essa deficiência é essencial para explicar
a ausência de conflito interno:
- Falta de Culpa:
O psicopata não experimenta sentimentos de culpa ou remorso, pois o
superego, que normalmente serviria para criticar e controlar ações que
contrariam normas éticas, é incapaz de cumprir esse papel.
- Autonomia do Id:
A ausência de barreiras internas permite que os impulsos destrutivos e
egocêntricos do id se manifestem livremente, sem gerar qualquer tipo de
angústia ou desconforto.
Freud também aponta em O
Mal-Estar na Civilização (1930) que as sociedades dependem do
desenvolvimento do superego para moderar os impulsos destrutivos e promover a
coexistência. No caso do psicopata, essa moderação está ausente, resultando em
comportamentos desinibidos.
Entretanto, a dificuldade
de dizer "não" em um indivíduo psicopata pode sugerir um conflito no
nível do ego, possivelmente relacionado a uma dinâmica de identificação
projetiva. Melanie Klein descreveu esse mecanismo como um processo
inconsciente pelo qual o indivíduo deposita aspectos de seu próprio self em
outra pessoa. No contexto psicopático, a dificuldade de recusar pedidos pode
estar ligada a uma tentativa de manipular ou controlar o outro ao conceder
inicialmente, mascarando intenções futuras.
Otto Kernberg e o
Narcisismo Patológico
Otto Kernberg aprofunda a
análise do psicopata em suas discussões sobre o narcisismo patológico e as
organizações de personalidade borderline. Segundo Kernberg:
- Ausência de Conflito Interno:
O psicopata opera com base em uma integração precária de sua
personalidade, marcada pela ausência de sentimentos de ambivalência ou
dilemas éticos. Ele não se vê preso entre desejos conflitantes, uma
característica comum em personalidades neuróticas.
- Vazio Emocional:
A falta de conflito interno está diretamente relacionada ao vazio
emocional que permeia a psique do psicopata. Esse vazio é mascarado por
comportamentos calculados e manipuladores, que muitas vezes enganam os
outros sobre sua verdadeira incapacidade de conexão emocional.
A ausência de empatia,
segundo Kernberg, deriva de uma incapacidade de reconhecer o outro como um
sujeito com emoções e necessidades próprias. Em vez disso, o psicopata vê o
outro como um objeto a ser usado para gratificação própria, o que reforça sua
desconexão emocional.
Jacques Lacan e o Gozo
Psicopático
Jacques Lacan oferece
insights profundos para compreender a falta de empatia do psicopata,
especialmente através do conceito de gozo (jouissance). Para
Lacan:
- Busca do Gozo:
O psicopata busca um prazer paradoxal que muitas vezes está associado à
transgressão e à dominação do outro. Essa busca incessante pelo gozo
ocorre sem a mediação simbólica do superego, que normalmente limitaria
tais impulsos.
- Falta Simbólica:
A falta de empatia pode ser interpretada como a ausência de uma relação
simbólica com o outro. Para o psicopata, o outro não é um sujeito, mas um
objeto que existe para atender às suas necessidades. Essa perspectiva é
ampliada pela rejeição da alteridade e pela incapacidade de internalizar
normas simbólicas que o conectem à ética social.
Lacan também descreve
como o psicopata parece operar "fora do campo da falta". Enquanto o
neurótico é atormentado pelo que lhe falta (um desejo não realizado, um ideal
inalcançável), o psicopata finge ignorar essa falta estrutural, concentrando-se
exclusivamente em seus próprios desejos.
O Papel do Narcisismo
O narcisismo desempenha
um papel central na estrutura psíquica do psicopata. Sigmund Freud, em Introdução
ao Narcisismo (1914), descreve o narcisismo primário como uma fase inicial
do desenvolvimento, em que o indivíduo é incapaz de distinguir entre o self e o
outro. No psicopata, essa regressão narcísica pode criar uma falsa
adaptabilidade: ele concorda com demandas externas para preservar a ilusão de
controle e invulnerabilidade.
Heinz Kohut, no entanto,
oferece uma abordagem mais contemporânea ao narcisismo. Em sua análise do
narcisismo patológico, Kohut sugere que o comportamento de complacência pode
ser uma tentativa de preservar a imagem grandiosa do self. O psicopata que não
diz "não" pode estar evitando o confronto com qualquer situação que
ameace sua autoimagem idealizada, adotando uma postura de falsa submissão para
evitar rejeição ou exposição de vulnerabilidades.
O Conceito de Perversão e
a Relação com o Outro
Jacques Lacan, em seus
seminários, discute a perversão como uma estrutura clínica onde o sujeito está
em constante busca de gozo (jouissance) através do outro. O psicopata
pode adotar a incapacidade de dizer "não" como uma estratégia para
manter a relação com o outro sob controle, utilizando a aceitação como
ferramenta para manipular ou estabelecer dependência. Esse comportamento está
relacionado ao conceito lacaniano de gozo, no qual o prazer paradoxal é
obtido ao frustrar ou enganar as expectativas do outro.
Além disso, a posição de
"aceitador" pode ser uma encenação do que Lacan chama de falta
simbólica, na qual o psicopata utiliza a concessão como um jogo para
confundir os limites entre desejo e submissão.
A Fragilidade da Recusa e
a Falta de Limites
O comportamento de não
saber dizer "não" também pode ser uma expressão da ausência de
limites claros no funcionamento psíquico do psicopata. Donald Winnicott, em sua
teoria do desenvolvimento emocional, destaca a importância de um ambiente suficientemente
bom para a formação de limites internos. A falta de recusa no psicopata pode
refletir uma falha nesse processo, em que os limites não foram internalizados
durante o desenvolvimento emocional.
Para Winnicott, a
capacidade de dizer "não" está ligada ao senso de self verdadeiro. No
psicopata, a ausência desse self verdadeiro pode resultar na ausência de
limites genuínos, sendo a aceitação irrestrita uma forma de evitar o contato
com o vazio interno.
Autores como Otto
Kernberg também oferecem insights valiosos para compreender as nuances das
estruturas de personalidade psicopática, sugerindo que a integração de aspectos
dissociados do self pode ser um ponto de partida terapêutico.
A dificuldade do
psicopata em dizer "não" não é apenas um comportamento superficial,
mas como já supracitado, um reflexo de conflitos profundos relacionados ao
narcisismo, à ausência de limites internos e à relação com o outro, onde a
manipulação é sempre um fator fundamental.
Estratégias Terapêuticas
e Reflexões Finais
Embora a psicanálise
tradicional enfrente desafios no tratamento de psicopatas devido à ausência de
conflito interno manifesto, possíveis abordagens terapêuticas podem se
concentrar em:
- Exploração da Dinâmica do Gozo:
Trabalhar no reconhecimento de como a dificuldade em dizer "não"
está ligada a estratégias de controle e manipulação inconscientes.
- Reconhecimento do Vazio:
Ajudar o indivíduo a confrontar o vazio interno que está mascarado pelo
comportamento de aceitação excessiva.
- Desenvolvimento do Superego:
Focar na construção de limites e na internalização de um senso moral
funcional.
O trato com um psicopata
no setting analítico apresenta desafios únicos e significativos devido à
estrutura psíquica peculiar desse tipo de paciente, que como já descrito acima,
inclui a ausência de conflito interno manifesto, a falta de empatia e a
tendência à manipulação. A relação transferencial, central ao processo
psicanalítico, pode ser seriamente comprometida nesse contexto, o que
frequentemente leva o analista a reconsiderar ou a recusar o tratamento.
1. A Dificuldade no
Setting Analítico
A dificuldade em
trabalhar com psicopatas no ambiente psicanalítico pode ser analisada em várias
frentes:
1.1. Ausência de Angústia
ou Conflito Interno
Diferentemente de outros
pacientes, o psicopata não apresenta angústias ou dilemas éticos que possam
impulsionar o processo analítico. Freud, em “O Ego e o Id” (1923), aponta que a
análise frequentemente requer a presença de um conflito interno para que o
paciente possa acessar material inconsciente e trabalhar suas questões. A
ausência desse conflito dificulta o progresso terapêutico, pois o psicopata não
busca mudanças genuínas, mas muitas vezes utiliza a análise como mais um
instrumento de controle ou manipulação.
1.2. Manipulação da
Transferência
No contexto da
transferência, que é fundamental para a psicanálise, o psicopata pode manipular
o analista em vez de formar uma relação terapêutica autêntica. Jacques Lacan
sugere que a relação transferencial depende de um reconhecimento simbólico
entre paciente e analista; no caso do psicopata, essa relação é frequentemente
instrumentalizada para manipular ou controlar o outro.
1.3. Relação com o Outro
como Objeto
Como descrito por Otto
Kernberg, o psicopata vê o outro como um objeto a ser usado, e não como um
sujeito com uma subjetividade autônoma. Essa perspectiva dificulta o
estabelecimento de uma relação analítica autêntica, na qual o paciente confia
no analista para ajudá-lo a acessar e compreender seu inconsciente.
1.4. Resistência à
Exploração do Inconsciente
O psicopata raramente
demonstra interesse em explorar questões inconscientes ou em se confrontar com
aspectos difíceis de si mesmo. Em vez disso, ele pode resistir ativamente à
análise, mantendo-se superficial ou desviando a atenção de temas relevantes.
2. Recusa Ética e
Técnica ao Atendimento
Embora a psicanálise se
proponha a tratar uma ampla variedade de questões psíquicas, a relação
terapêutica com um psicopata pode ser prejudicial para ambas as partes. Nesses
casos, o psicanalista pode decidir, ética e tecnicamente, recusar o
atendimento. Essa recusa pode ser embasada pelos seguintes motivos:
2.1. Ética Profissional
O Código de Ética de
diversas associações psicanalíticas reconhece o direito do psicanalista de
recusar pacientes cujas estruturas psíquicas ou objetivos vão contra os
princípios e limites do tratamento. Se o psicopata não está disposto a
colaborar ou demonstra um padrão consistente de manipulação, o analista pode se
recusar a prosseguir para evitar a perpetuação de uma relação disfuncional.
2.2. Proteção ao Analista
A interação com
psicopatas pode ser extenuante emocionalmente para o analista, especialmente
quando há tentativas de manipulação ou inversão de papéis. Para preservar a
neutralidade do setting analítico, o psicanalista pode optar por não conduzir a
análise.
2.3. Limites Técnicos
A análise psicanalítica
tradicional não é necessariamente o método mais eficaz para tratar psicopatas,
conforme observado por Kernberg e outros autores. Em casos em que a
psicoterapia cognitivo-comportamental ou outras intervenções sejam mais
indicadas, o analista pode redirecionar o paciente para especialistas
apropriados.
2.4. Avaliação Inicial
Durante as sessões
iniciais, o analista pode realizar uma avaliação para identificar a estrutura
psíquica do paciente e, com base nisso, decidir se o tratamento é viável. Se
sinais de resistência extrema, manipulação ou falta de angústia forem
predominantes, o analista pode justificar a recusa.
3. Reflexões Finais
Embora a psicanálise
busque acessar o inconsciente e promover mudanças profundas, ela depende de uma
relação terapêutica baseada na confiança, na motivação e na disposição para o
autoconhecimento — elementos frequentemente ausentes no psicopata. Dessa forma,
a recusa ética e fundamentada de atender um paciente psicopata pode ser uma
decisão profissionalmente responsável.
Comentários