A Perversão na Vida Adulta e Outras Abordagens além da Freudiana
Na psicanálise, a ideia
de que todo ser humano carrega problemas psíquicos está profundamente
relacionada às teorias de repressão e inconsciente de Sigmund Freud.
Segundo Freud, a repressão é um mecanismo psíquico central pelo qual o
indivíduo reprime desejos, impulsos ou memórias que considera inaceitáveis,
especialmente durante a infância. Essas repressões, mesmo inconscientes, podem
influenciar profundamente o comportamento na vida adulta, dando origem a
sintomas neuróticos ou perversões.
A perversão, nesse
contexto, é entendida por Freud como uma forma de desvio da pulsão sexual de
sua finalidade "normal" ou socialmente aceita. No livro “Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade”(1905), Freud explora como a sexualidade infantil
desempenha um papel crucial no desenvolvimento psíquico. Ele argumenta que, na
infância, a sexualidade não está organizada em torno do objetivo genital, mas é
"polimorficamente perversa", ou seja, há uma busca por prazer em
diferentes zonas erógenas e práticas que nem sempre se alinham ao que se
considera convencional na vida adulta.
Ao longo do
desenvolvimento psíquico, o que a sociedade e a cultura julgam como inaceitável
tende a ser reprimido, deslocado ou sublimado. No entanto, nem sempre esses
processos ocorrem de forma "bem-sucedida". Como apontado por Jean
Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis em “Vocabulário de Psicanálise”(1967), as
perversões podem ser vistas não apenas como patologias, mas também como
estruturantes do psiquismo humano, muitas vezes sendo expressões de conflitos
não resolvidos entre o id (os impulsos inconscientes), o ego (a
consciência) e o superego (as normas internalizadas).
A perversão na
psicanálise foi amplamente discutida por autores além de Freud, como Jacques
Lacan e Melanie Klein, que trouxeram novas perspectivas sobre o tema.
Jacques Lacan:
Lacan reinterpretou a perversão como uma estrutura psíquica distinta, onde o
sujeito busca satisfazer suas pulsões ao desafiar as normas sociais e
culturais. Ele destacou o papel do "Outro" na formação da perversão,
sugerindo que o perverso se posiciona como aquele que desafia a lei, mas ao
mesmo tempo depende dela para sua existência. Lacan também explorou a relação
entre perversão e o desejo inconsciente, enfatizando como o perverso atua para
sustentar a fantasia do Outro.
Melanie Klein: Klein, por sua vez, abordou a perversão a partir de sua teoria das posições psíquicas. Ela sugeriu que a perversão pode estar relacionada à posição esquizoparanóide, onde o indivíduo lida com angústias primitivas e tenta controlar o objeto amado através de mecanismos de defesa como a cisão e a idealização. Para Klein, a perversão pode ser vista como uma tentativa de lidar com conflitos internos e ansiedades profundas.
A perversão pode ter
impactos significativos na vida adulta, especialmente nas relações
interpessoais e na capacidade de estabelecer vínculos saudáveis. Indivíduos com
estruturas perversas podem apresentar dificuldades em lidar com normas sociais
e podem buscar satisfação em práticas que desafiam essas normas. Isso pode
levar a conflitos emocionais, isolamento social ou até mesmo problemas legais.
Além disso, a perversão em geral está associada a traumas não resolvidos da
infância, que continuam a influenciar o comportamento e as escolhas na vida
adulta.
A relação entre a
perversão e os traumas não resolvidos da infância é um tema profundamente
explorado por diversos teóricos da psicanálise. O entendimento central é que
experiências traumáticas na infância, especialmente aquelas que envolvem
conflitos emocionais, abusos ou negligências, têm um impacto duradouro na
formação da subjetividade. Esse impacto muitas vezes encontra expressão em
manifestações perversas na vida adulta. Podemos entender ainda melhor a
temática ao observarmos o que outros autores, através das lentes da
psicanálise, pensam sobre a perversão:
Donald Winnicott: Winnicott enfatiza a importância do ambiente inicial no desenvolvimento do indivíduo, destacando o papel da mãe ou do cuidador na criação de um espaço potencial para que a criança experimente sua criatividade e sentido de self. Quando o ambiente inicial é inadequado, e o cuidado é insuficiente ou até hostil, podem surgir traumas que interrompem a integração psíquica. A perversão, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de a pessoa tentar reconstituir ou proteger aspectos do self que foram fragmentados durante a infância.
Wilfred Bion: Bion também contribui para a compreensão de traumas e sua relação com distúrbios psíquicos. Bion explorou o conceito de "continente e conteúdo", onde o cuidador serve como um continente capaz de processar as experiências emocionais brutas da criança. Quando esse processo falha devido ao trauma ou negligência, as experiências emocionais não processadas podem levar à criação de padrões defensivos na vida adulta, incluindo o comportamento perverso.
Otto Kernberg:
Kernberg, conhecido por seus estudos sobre personalidade, também discutiu a
relação entre traumas infantis e estruturas perversas. Ele sugere que a
perversão pode se desenvolver como resultado de dificuldades na internalização
de relações objetais durante a infância, onde o indivíduo tem dificuldade em
integrar aspectos positivos e negativos das figuras parentais. Esse fenômeno
pode levar a formas de gratificação que desafiam normas sociais e que são
marcadas por dinâmicas intensas de poder e controle.
A perversão vinculada a traumas infantis pode influenciar profundamente a maneira como o indivíduo estabelece relacionamentos, administra conflitos e busca satisfação. Muitas vezes, o comportamento perverso na vida adulta pode ser uma tentativa de lidar com dores antigas ou de encontrar formas de compensação para aquilo que foi perdido ou negado durante a infância.
Muitos estudos
contemporâneos questionam teorias freudianas, incluindo a da perversão, devido
a mudanças nos paradigmas científicos, avanços em diferentes áreas do
conhecimento e novas perspectivas culturais e sociais. Podemos destacar algumas
razões principais para essas críticas:
1. Falta de
Comprovação Científica: Muitas das teorias de Freud, incluindo a respeito
da perversão, baseiam-se em observações clínicas subjetivas e não em métodos
científicos rigorosos. Pesquisas modernas nas áreas de neurociências,
psicologia experimental e genética frequentemente apontam que os conceitos
freudianos carecem de validação empírica.
2. Generalizações
Psicológicas: Freud desenvolveu muitas de suas ideias com base em um número
limitado de casos clínicos. Críticos argumentam que suas generalizações sobre a
perversão e a sexualidade infantil podem não se aplicar universalmente a
diferentes culturas e contextos.
3. Mudanças Sociais e
Culturais: A visão de Freud sobre a perversão foi desenvolvida em um
contexto histórico específico, no início do século XX, quando havia uma forte
repressão sexual e normas sociais rígidas. Pesquisadores contemporâneos apontam
que conceitos como "normalidade" e "desvio" são
culturalmente construídos e que a definição de perversão, por exemplo, deve ser
reavaliada à luz de entendimentos mais inclusivos e dinâmicos sobre
sexualidade.
4. Desafios de
Teóricos Posteriores: Muitos teóricos psicanalíticos posteriores, como
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, criticaram Freud. Foucault,
por exemplo, em “História da Sexualidade”, argumenta que a psicanálise
contribuiu para patologizar e controlar a sexualidade, reforçando normas
sociais em vez de realmente libertar o sujeito. Já Deleuze e Guattari, em “O
Anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia 1”(1972), questionam a centralidade da
família e da repressão na teoria freudiana, propondo uma visão mais plural e
rizomática das forças psíquicas.
5. Perspectivas
Feministas e Interseccionais: Estudos feministas e interseccionais também
revisaram as ideias freudianas, especialmente a respeito da perversão. Teóricos
como Judith Butler e Adrienne Rich criticam como os conceitos de Freud
perpetuam visões patriarcais de gênero e sexualidade.
Em resumo, embora a
psicanálise freudiana continue sendo uma base importante para o entendimento do
psiquismo humano, suas teorias enfrentam desafios devido a novas formas de
pensar a mente, a sexualidade e o comportamento humano. Isso não invalida completamente
suas contribuições, mas aponta para a necessidade de uma abordagem mais crítica
e contextual dentro da contemporaneidade.
Considerações finais
Embora a psicanálise
tenha oferecido um modelo rico e profundo para pensar a relação entre infância,
repressão e perversão, é importante abordar esses conceitos com um olhar
crítico. Como já visto, muitos estudos contemporâneos questionam algumas das
teorias freudianas, apontando para a necessidade de adaptá-las aos contextos
culturais e às descobertas das neurociências. No entanto, o modelo
psicanalítico, principalmente o freudiano, ainda é uma ferramenta poderosa para
compreender como as primeiras experiências de vida moldam nossa subjetividade.
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