Um Olhar Psicanalítico Sobre a 1a Temporada da Série Adolescência da Netflix

 



A série Adolescência da Netflix explora temas como saúde mental, dinâmicas familiares, masculinidade tóxica, bullying, pornografia e a influência das redes sociais e da internet na juventude moderna. Sob a lente psicanalítica, esses temas podem ser analisados como manifestações de conflitos internos e externos que marcam o desenvolvimento do ego e das relações objetais, desde a infância até a vida adulta. Os eventos retratados na série destacam como as experiências adolescentes podem deixar marcas profundas e duradouras na estrutura psíquica.

Sigmund Freud, em sua teoria do desenvolvimento psicossexual, destacou a adolescência como um período de intensificação das pulsões e de reorganização do ego. A série poderia ser vista como uma representação dos desafios que os jovens enfrentam ao lidar com essas pulsões, especialmente em um contexto contemporâneo onde as redes sociais amplificam a busca por validação e a exposição pública. Melanie Klein, com sua teoria das relações objetais, poderia interpretar as dinâmicas familiares retratadas na série como reflexos das relações internas do indivíduo com seus objetos primários. A agressividade e os conflitos apresentados poderiam ser vistos como projeções de fantasias inconscientes e lutas internas entre as partes construtivas e destrutivas da mente. Donald Winnicott, por sua vez, poderia analisar a série sob a ótica do "espaço transicional". Ele argumentaria que os jovens retratados estão em busca de um equilíbrio entre a dependência dos pais e a autonomia, utilizando as redes sociais e outros elementos culturais como objetos transicionais para explorar sua identidade.

 

Dinâmicas Familiares

As relações familiares na série são apresentadas como um dos principais eixos narrativos, revelando complexidades emocionais e dinâmicas que moldam os personagens e também influenciam os padrões de comportamento que eles reproduzem  em outras áreas da vida, como amizades, relacionamentos amorosos e até mesmo suas interações no ambiente virtual. Essas dinâmicas familiares são apresentadas como um microcosmo dos desafios enfrentados durante a adolescência, com impactos que ecoam na vida adulta.

 

Bullying

O bullying retratado na série pode ser analisado sob a ótica da psicanálise como uma manifestação de dinâmicas inconscientes que envolvem agressividade, busca por poder e conflitos internos projetados no outro. A série explora como o bullying afeta tanto as vítimas quanto os agressores, destacando as consequências emocionais e sociais dessa prática.

Podemos destacar algumas perspectivas psicanalíticas sobre o bullying:

  1. Agressividade e Pulsão de Morte: Freud, em Além do Princípio do Prazer, introduz o conceito de “pulsão de morte”, que pode ser associado à agressividade presente no bullying. Essa pulsão, quando não elaborada, pode ser direcionada ao outro como uma forma de aliviar tensões internas.
  2. Projeção e Identificação: Citamos novamente Melanie Klein e a sua teoria das relações objetais, porque esta sugere que o bullying pode ser uma forma de projeção, onde o agressor transfere seus próprios sentimentos de inadequação ou angústia para a vítima. Ao atacar o outro, o agressor tenta lidar com seus próprios conflitos internos.
  3. Busca por Validação e o Outro Lacaniano: Jacques Lacan argumenta que o sujeito é constituído no campo do Outro e que o desejo é mediado pela relação com esse Outro. No contexto do bullying, o agressor pode buscar validação e reconhecimento por meio da dominação, enquanto a vítima é colocada em uma posição de exclusão ou inferioridade.
  4. Impacto na Vítima: O “espaço transacional” winnicottiano pode interpretar o bullying como uma ruptura no ambiente suficientemente bom, necessário para o desenvolvimento emocional saudável. A vítima, ao ser exposta a essa violência, pode desenvolver dificuldades em confiar no ambiente e nas relações interpessoais.

A série também destaca como o bullying é amplificado pelas redes sociais, criando um ambiente onde a agressividade pode ser disseminada (também) de forma anônima e contínua. Isso intensifica o impacto emocional nas vítimas e reforça as dinâmicas de poder dos agressores.

 

Masculinidade Tóxica

A masculinidade tóxica, um tema central da série, pode ser interpretada como uma manifestação da “pulsão de morte” freudiana, como já discorrido dentro da questão do bullying. André Green, com seu conceito de "narcisismo negativo", oferece uma perspectiva sobre como a desconexão emocional pode levar a comportamentos destrutivos. A violência demonstrada pelo personagem principal da série pode ser analisada sob a lente psicanalítica como uma manifestação de conflitos internos e dinâmicas sociais que envolvem masculinidade tóxica, narcisismo e traços psicopáticos.

Jacques Lacan, ao discutir o "gozo fálico", oferece uma perspectiva sobre como a masculinidade é construída em torno de uma busca por validação que frequentemente resulta em comportamentos de dominação. Essa busca pode ser vista como uma tentativa de preencher uma falta simbólica, mas que, paradoxalmente, reforça a fragilidade do sujeito.

 

Consumo de Pornografia

O consumo de pornografia entre jovens mostrado na série pode ser interpretado como uma forma de lidar com ansiedades relacionadas à sexualidade e à identidade. No entanto, a psicanálise sugere que esse uso pode reforçar dinâmicas de objetificação e controle, especialmente quando associado a ideais de masculinidade hegemônica. Alberto Gomes de Freitas Filho e Maurício Rodrigues de Souza, em seus estudos sobre pornografia online, destacam como a indústria pornográfica perpetua discursos de controle e dominação, alinhados com a masculinidade tóxica. A pornografia, nesse contexto, pode ser vista como um "objeto transicional" no sentido winnicottiano, mas que, em vez de promover o crescimento emocional, pode cristalizar padrões de comportamento que dificultam o desenvolvimento de relações interpessoais saudáveis.

 

Narcisismo

O narcisismo, como descrito por Freud em Introdução ao Narcisismo, envolve um investimento libidinal no próprio ego, que pode se manifestar em comportamentos de auto engrandecimento ou desconexão emocional. O "narcisismo negativo" de Green mostra que a desconexão emocional pode levar também ao isolamento, além da violência. No contexto da masculinidade tóxica, o narcisismo pode ser visto como uma tentativa de proteger o ego de sentimentos de inadequação, enquanto o uso da pornografia pode funcionar como uma forma de reforçar fantasias de controle e poder.

 

Psicopatia

A psicopatia exibida pelo personagem principal pode ser analisada sob a ótica psicanalítica como uma configuração psíquica complexa, marcada pela ausência de empatia, manipulação emocional e comportamentos destrutivos. Na série, a psicopatia do personagem serve como um catalisador para explorar questões mais amplas, como bullying, masculinidade tóxica e a desconexão emocional em um mundo digitalizado. Essas características destacam não apenas a complexidade do indivíduo, mas também as influências sociais e relacionais que perpetuam comportamentos destrutivos. A psicopatia, no contexto da série, pode ser vista como uma forma extrema de narcisismo, onde o personagem com 13 anos parece ser incapaz de estabelecer vínculos emocionais genuínos. Donald Winnicott, com sua teoria do "falso self", oferece uma perspectiva sobre como a desconexão emocional pode levar à construção de uma identidade superficial que mascara a fragilidade interna.

 

Redes Sociais e Internet

A influência das redes sociais e da internet mostradas na série reflete a busca por validação e os perigos da radicalização online. Jacques Lacan, com sua teoria do desejo mediado pelo Outro, oferece uma lente para compreender como os adolescentes se tornam vulneráveis às dinâmicas digitais. A abordagem incisiva pela série sobre os perigos da internet e da radicalização online, mostra como essas dinâmicas podem impactar profundamente os jovens, onde os algoritmos e o anonimato permitem que ideologias extremas ganhem força, oferecendo aos jovens um espaço onde suas inseguranças e conflitos internos são manipulados por discursos polarizadores. Esse processo pode levar ao isolamento emocional e à perpetuação de comportamentos agressivos ou destrutivos, favorecendo a intensificação de pulsões, projeções e alienação.

 

Ferramentas Psicanalíticas

As questões complexas e contemporâneas mostradas na série Adolescência, como saúde mental, dinâmicas familiares, masculinidade tóxica, bullying, consumo de pornografia, narcisismo e o impacto das redes sociais na juventude podem ser analisadas sob a lente psicanalítica, como já descrito. Os temas acima supracitados, interligados, revelam como as dinâmicas psíquicas e sociais moldam comportamentos e relações tanto na infância, quanto na adolescência e na vida adulta.

Na série, essa fase da vida recebe um peso maior porque a adolescência, sob a ótica psicanalítica, é um momento crucial de transformação psíquica, marcado por intensos conflitos internos e reestruturações na relação do sujeito com o mundo. A complexidade dessa etapa é explorada na narrativa, destacando os desafios emocionais, sociais e psicológicos enfrentados pelos jovens.

A adolescência é tratada como um período de intensa "plasticidade psíquica", onde as bases para a vida adulta são estabelecidas. Ao dar ênfase a essa etapa, a série ressalta como os eventos, traumas e relações desse período deixam marcas profundas na subjetividade dos jovens, moldando sua forma de se relacionar consigo mesmos e com o mundo.

No setting analítico, a psicanálise pode ajudar adolescentes a explorar os significados subjacentes ao consumo de pornografia e aos comportamentos associados à masculinidade tóxica, desconstruindo padrões de masculinidade tóxica, promovendo uma compreensão mais saudável de si mesmo e das relações interpessoais.

No caso do bullying, a psicanálise pode ajudar tanto vítimas quanto agressores a compreenderem os conflitos subjacentes que alimentam essas dinâmicas. Para as vítimas, o trabalho analítico pode promover a reconstrução da autoestima e a elaboração do trauma. Para os agressores, a análise pode ajudar a identificar e transformar os impulsos agressivos e as necessidades de validação.

O narcisismo demonstrado pelo personagem principal da série pode ser abordado e tratado pela psicanálise, envolvendo:

1.Exploração das dinâmicas inconscientes e identificação dos conflitos internos e das fantasias que alimentam o comportamento narcisista, promovendo uma maior consciência dessas dinâmicas.

2. Reconstrução do vínculo com o outro, trabalhando para restaurar a capacidade do paciente de estabelecer relações genuínas e empáticas, diminuindo a desconexão emocional.

3. Elaboração de sentimentos de inadequação, permitindo que o paciente enfrente e transforme os sentimentos de vulnerabilidade que estão na base do comportamento narcisista.

4. Integração do verdadeiro self: Winnicott destaca a importância de reconectar-se com o verdadeiro self, superando a rigidez do falso self frequentemente associado ao narcisismo.

A psicanálise pode ajudar a reconstrução da relação do paciente com o próprio ego e com os outros, ajudando a compreensão e a mitigação dos conflitos psíquicos subjacentes à adolescência e também à vida adulta, já que a adolescência, como bem abordado pela série, é um período de transformação psíquica que estabelece as bases para a estruturação da personalidade, das relações objetais e da forma como o sujeito se posiciona diante do mundo. A análise pode promover uma maior consciência sobre os conflitos internos e as influências culturais, permitindo que o indivíduo desenvolva formas mais saudáveis de se relacionar consigo mesmo e com os outros, ajudando os adolescentes e suas famílias a compreenderem e resolverem esses conflitos, promovendo uma comunicação mais aberta e saudável.

 

 


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