A Banalização da Violência e a Estética do Narcisismo: Um Diálogo Entre Psicanálise e Criminologia (“Eu usava calça da Diesel”)
A violência, quando reiterada e pouco sancionada, tende a se
infiltrar como elemento quase ordinário na vida social. No Brasil, a percepção
de leis brandas ou de aplicação inconsistente em relação a crimes graves
contribui para a formação de um imaginário coletivo em que o ato violento é
visto como algo negociável, relativizado, justificável ou até para servir de
palco para a exibição de uma persona idealizada, revelando a confluência entre
narcisismo exacerbado, esvaziamento ético e uma cultura de aparência
intensificada pelas redes sociais.
O caso recente de um homicídio cometido por motivo fútil ,
tendo como vítima um trabalhador de serviços de limpeza urbanos, ilustra de
forma crua essa banalização. Ao invés de expressar arrependimento ou reconhecer a
gravidade da ação, o autor do crime, em audiência na delegacia, destacou um
detalhe para ele importante: “eu usava uma calça da Diesel”, para tentar
provar que não era ele na cena do crime, apesar de testemunhas, câmeras e a
placa do carro contradizerem tal afirmativa.
Essa resposta, aparentemente absurda ou deslocada, pode ser
lida, pela lente psicanalítica, como manifestação de um funcionamento
narcísico marcado pela centralidade da imagem e pelo esvaziamento do valor
simbólico da vida alheia. A violência, nesse registro, não é elaborada como
transgressão ética, mas como evento no qual o sujeito ainda tenta preservar, ou
reforçar, um ideal de self pautado na aparência.
As redes sociais, em sua lógica de espetáculo e curadoria da
própria imagem, oferecem terreno fértil para a construção de um falso self hipermediado
por filtros, retoques e tecnologias de inteligência artificial. No caso em questão, todas as fotos
do autor do crime eram modificadas digitalmente, sugerindo a busca incessante
por uma versão “aperfeiçoada” e esteticamente controlada de si.
Na visão lacaniana, esse investimento imagético extremo
dialoga com o Estágio do Espelho, onde o eu se constitui na identificação com
uma forma idealizada. Quando essa lógica se cristaliza e não é temperada
pela alteridade e pelo reconhecimento do outro como sujeito, o risco é que o
outro se reduza a mero cenário para a própria encenação, inclusive no ato
violento.
A psicanálise pode e oferece ferramentas para compreender esse fenômeno não apenas como questão jurídica, mas também como reflexo de estruturas psíquicas individuais e coletivas.
O narcisismo, entendido na psicanálise como uma configuração psíquica em que o investimento libidinal concentra-se excessivamente no próprio eu, tem diferentes leituras entre os autores clássicos da Psicanálise:
Sigmund Freud – Em Introdução ao Narcisismo (1914), Freud distingue o narcisismo primário (necessário para a constituição do eu) do narcisismo secundário (quando a libido retirada de objetos externos retorna para o eu). Quando o narcisismo secundário predomina de forma patológica, há empobrecimento do interesse pelo outro e hipertrofia da autoimagem, contexto no qual o outro pode ser instrumentalizado, inclusive em atos violentos, sem empatia ou reconhecimento da alteridade. No caso foco deste artigo, a resposta do agressor (“eu usava uma calça da Diesel”) ilustra essa recusa em deslocar o foco para a vítima ou para a gravidade do ato. Em sua obra Mal-estar na Civilização, Freud descreve como a agressividade é inerente à condição humana, exigindo constante trabalho de sublimação e regulação pela lei. Quando esta lei falha, abre-se caminho para o retorno do ato bruto, onde a pulsão de morte não encontra barreiras simbólicas.
Jacques Lacan – Com a teoria do Estágio do Espelho, Lacan mostra que o eu se estrutura a partir de uma imagem idealizada, que o sujeito busca confirmar incessantemente. Em funcionamento narcísico rígido, qualquer ameaça a essa imagem pode ser vivida como intolerável, desencadeando reações agressivas para restaurar a "integridade" imaginária. A preocupação extrema com estética e aparência (incluindo o uso de filtros e IA para alterar fotos) traduz essa busca permanente de validação do ideal especular. A fala sobre a “calça da Diesel” em momento de investigação perante autoridade policial não é mero desvio de assunto, mas um reposicionamento no registro imaginário: reafirmar a própria imagem em detrimento da gravidade do ato.
Melanie Klein – Klein associa o narcisismo patológico a defesas primitivas, como a idealização de si e a desvalorização do objeto. Na posição esquizoparanóide. Em contextos de violência banalizada, esse modo de funcionamento pode ser socialmente reforçado: o outro é um obstáculo ou um cenário, não um sujeito. O funcionamento narcísico defensivo, alimentado pela idealização de si e pela desvalorização do outro, pode ser lido como prolongamento de posições mais primitivas, como a posição esquizoparanóide, onde o outro é fragmentado e visto como alvo de ataques projetivos nas quais a agressividade é projetada e o outro é visto como descartável.
Donald Winnicott – O falso self, descrito por Winnicott, é uma adaptação defensiva às expectativas externas, que pode se cristalizar em uma persona cuidadosamente controlada (e muitas vezes estetizada). A violência, nesse registro, pode emergir quando essa imagem é ameaçada ou para reafirmar controle diante de frustrações narcísicas. A noção de falso self ajuda a compreender a vida midiatizada, onde a apresentação filtrada, com fotos manipuladas por IA, esconde um vazio interno e uma dificuldade de contato genuíno com a realidade e com o outro como sujeito.
André Green: Sua noção de estado-limite (borderline) e do “negativo” ajuda a entender como o ato violento pode surgir como tentativa de preencher um vazio, sendo ao mesmo tempo expressão e encenação para manter viva uma imagem de onipotência. Green, psicanalista francês, elaborou de forma singular a noção do trabalho do negativo e sua relação com estados-limite (borderline). Para ele, certas configurações psíquicas não se definem tanto pela presença de conteúdo ou representações, mas pela ausência estruturante, um vazio que atua no centro da vida mental. Quando a capacidade de simbolizar falha, o psiquismo recorre a formas de atuação (acting out) para preencher ou contornar esse vazio. O ato violento, nesses casos, pode funcionar como uma tentativa paradoxal de sentir algo, romper a anestesia interna, ainda que de forma destrutiva. Em contextos sociais de impunidade, esse acting out encontra ressonância externa: o ambiente não apenas falha em conter como pode até legitimar, criando um “campo de permissão” para a passagem ao ato.
Christopher Bollas: Com o conceito de self estético (o self estético preocupa-se mais com a apresentação e o impacto visual do que com a substância das ações ou relações). Bollas mostra como certos indivíduos vivem para cultivar uma “obra de arte” pessoal, tratando o próprio corpo e sua apresentação como principal projeto o que, em quadros de onipotência e indiferença ética, pode coexistir com violência extrema. A manutenção dessa “obra” pode se sobrepor a considerações morais, levando o indivíduo a priorizar coerência estética em detrimento da responsabilidade. As plataformas digitais amplificam essa lógica, tornando a curadoria da própria imagem uma prática constante, o que, em quadros patológicos, pode coexistir com indiferença empática e condutas violentas.
A criminologia clássica e a moderna oferecem chaves para entender como a ausência de sanções severas (ou a percepção de impunidade) reforça comportamentos violentos:
Cesare Beccaria (Dos Delitos e das Penas, 1764) – Defendia que a função da pena era impedir novos crimes, e que sua eficácia dependia mais da certeza e celeridade da punição do que de sua dureza. Quando o sistema jurídico é lento, permeado por brechas ou seletivo, o cálculo do infrator muda: o risco percebido diminui e o custo esperado do crime se torna baixo. No Brasil, onde há morosidade processual e possibilidade frequente de recursos e benefícios, essa certeza é abalada, minando a função preventiva.
Jeremy Bentham – Com sua teoria utilitarista, via a punição como instrumento de dissuasão: o cálculo racional levaria o indivíduo a evitar o crime se o custo superasse o benefício. A percepção de penas brandas ou de aplicação incerta favorece o raciocínio oposto, o risco é calculado como “valendo a pena”, onde o criminoso, como um agente racional, pesa a relação custo-benefício. Em contextos em que a pena é incerta, reversível ou mitigável, o “benefício” do ato (ganho econômico, afirmação de poder, satisfação de impulso) pode superar o “custo” potencial.
Émile Durkheim – Na sociologia criminal, observa o crime como fenômeno normal, mas ressalta que sua taxa e gravidade estão ligadas ao grau de coesão social e à eficácia das normas. Quando a norma é fraca ou pouco respeitada, há anomia, e comportamentos extremos deixam de ser vistos como exceção. A criminologia fornece elementos para compreender como fatores estruturais e legais influenciam a dinâmica da violência. Sociólogo, ressalta a pena como instrumento de reafirmação moral da coletividade. Se a resposta social é branda ou inconsistente, a mensagem simbólica é de tolerância, corroendo o tecido normativo e abrindo espaço para que a violência se banalize.
Edwin Sutherland - Sua teoria da associação diferencial mostra como ambientes tolerantes ou glamurizantes da violência reforçam comportamentos agressivos. O comportamento criminoso é aprendido em interação com outros: se o ambiente social minimiza a gravidade da violência e não pune efetivamente, a banalização se incorpora à cultura local como padrão.
A Criminologia crítica contemporânea aponta que a seletividade penal, punindo mais duramente crimes de baixa escala social e relativizando atos violentos de indivíduos com maior capital econômico ou simbólico, reforça desigualdades e incentiva um sentimento de “licença” em certos grupos.
No campo da psicanálise freudiana, a lei tem papel estruturante: delimita o possível, interdita o gozo irrestrito e protege o laço social. Quando a lei falha em conter ou punir adequadamente condutas gravemente lesivas, a função superegóica coletiva se fragiliza.
A conjugação entre falhas na aplicação da lei e um
funcionamento narcísico centrado na autoimagem gera um campo onde o outro
deixa de ser reconhecido como sujeito de direitos. Na ausência de
limites externos sólidos (lei aplicada) e internos (superego estruturado), a
pulsão agressiva encontra vias de atuação, às vezes marcadas por exibição
pública, quase como parte da identidade de quem a pratica.
A consequência é dupla:
- No
nível subjetivo,
os indivíduos mais propensos à atuação impulsiva ou à onipotência
narcísica sentem-se autorizados a agir sem grande cálculo de
consequências.
- No
nível simbólico,
a sociedade internaliza que a violência pode ser negociada, “comprada” ou
relativizada, um retorno a formas arcaicas de regulação pelo poder
pessoal, não pela norma universal.
Hannah Arendt, ainda que não partindo da psicanálise,
descreveu a “banalidade do mal” como a normalização de atos extremos pela
repetição e pela perda de pensamento crítico. No Brasil, a circulação constante de casos
violentos na mídia, somada à percepção de impunidade, produz um fenômeno de
dessensibilização: o horror se dilui na rotina, e a singularidade de cada
vítima se perde no excesso de informação.
A pulsão agressiva, como descreve Freud, é parte constitutiva da vida psíquica. O desafio civilizatório é canalizá-la por vias que não destruam o laço social. Lacan, por sua vez, lembra que a civilização implica renúncia a certos modos de gozo para que a vida em comum seja possível.
Quando a legislação, e sobretudo sua aplicação concreta,
falha em nomear o ato violento como intolerável e digno de sanção proporcional,
há uma liberação implícita dessa agressividade. O ato homicida por motivo fútil
deixa de ser exceção monstruosa e se aproxima de uma encenação narcísica em que
a morte do outro é apenas um detalhe narrativo.
A leitura integrada da psicanálise e da criminologia mostra que do ponto de vista intrapessoal, o narcisismo exacerbado, sobretudo quando ligado a um falso self estético, favorece a instrumentalização do outro e a indiferença diante do sofrimento alheio e do ponto de vista estrutural, a ausência de resposta penal clara e firme comunica que o ato violento não será decisivamente interrompido ou sancionado, transformando-o em algo socialmente menos impensável. Sendo assim, essa combinação é explosiva: sujeitos cuja dinâmica psíquica favorece a autorreferência e o apagamento do outro operam em um cenário legal que não contém nem desestimula de maneira eficaz o ato violento.
A psicanálise por óbvio não substitui a política criminal,
mas pode contribuir para compreender como a falência simbólica da lei ressoa no
inconsciente e no tecido social. A banalização da violência é tanto efeito jurídico quanto
fenômeno psíquico cultural: ela nasce do encontro entre pulsões não
simbolizadas, ideais narcísicos inflados e ausência de interdições claras.
Para a psicanálise, a lei é mais do que um conjunto de
normas: ela é o que estrutura o desejo, permitindo o convívio. A criminologia ajuda a lembrar que,
sem aplicação previsível e igualitária, essa lei simbólica se esvazia, abrindo
espaço para o ciclo de violência e sua banalização. No caso em análise, o
ato violento e a reação estética não são desvios isolados, mas sintomas de um
tecido social onde a imagem pessoal pode pesar mais que a vida do outro, e onde
a fragilidade da lei confirma que essa hierarquia é possível.
Reforçar a função da lei, tanto na letra quanto na prática, é também oferecer ao sujeito um limite que não seja só exterior, mas passível de ser internalizado. É resgatar, no campo simbólico, a noção de que a vida do outro não é cenário para a autopromoção, mas núcleo ético da convivência humana.
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