Manipulação Emocional Instrumental à Luz da Psicanálise: Entre o Narcisismo e o Espetáculo Digital de Crianças
A crescente demanda de pedófilos por fotos e vídeos, ainda
que aparentemente inocentes, de crianças nas redes sociais exige vigilância
constante e ação articulada de pais, escolas, sociedade e autoridades públicas. Este artigo propõe uma reflexão
psicanalítica sobre a manipulação emocional instrumental, entendida como o uso
estratégico de afetos para fins de controle, validação ou ganho simbólico. A
partir de autores clássicos como Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein e
Donald Winnicott, bem como de contribuições contemporâneas, analisa-se como
esse fenômeno se manifesta nas redes sociais, especialmente em contextos de
exposição infantil, luto e sofrimento. Dois casos recentes, um envolvendo a
exposição de menores em situação de vulnerabilidade e outro relacionado à
espetacularização do luto familiar, são discutidos como expressões de uma
falência simbólica e de uma atuação narcisista.
A manipulação emocional instrumental é um fenômeno que
atravessa relações humanas desde tempos imemoriais, mas que ganha contornos
específicos na era digital. Trata-se do uso deliberado de emoções,
especialmente dor, sofrimento e vulnerabilidade, como ferramenta para
influenciar, controlar ou obter reconhecimento do outro. Na
contemporaneidade, esse mecanismo psíquico se entrelaça com a lógica do
espetáculo, da performance e da monetização do afeto.
A psicanálise, enquanto teoria da subjetividade e do
inconsciente, oferece fortes e interessantes ferramentas para compreender esse
fenômeno. Ao articular conceitos como narcisismo, identificação projetiva,
falso self e acting out, é possível interpretar a manipulação emocional não
apenas como estratégia consciente, mas como expressão de conflitos psíquicos
profundos.
Sigmund Freud: Narcisismo, Recalque e Acting Out
Sigmund Freud, em Introdução ao Narcisismo (1914),
descreve o narcisismo como uma etapa do desenvolvimento psíquico em que o
sujeito investe libido em si mesmo. Quando esse investimento se torna excessivo
ou patológico, o outro é instrumentalizado como extensão do ego. A manipulação
emocional, nesse contexto, pode ser vista como uma tentativa de manter a imagem
idealizada de si, mesmo diante da dor ou da perda.
Freud inaugura a psicanálise ao revelar que o sujeito não
é senhor de si, mas atravessado por desejos inconscientes, conflitos e defesas.
Em sua obra Introdução ao Narcisismo (1914), ele descreve o narcisismo como uma
etapa em que a libido é investida no próprio ego. Quando esse investimento se
torna patológico, o outro é instrumentalizado como espelho narcísico, não
como sujeito, mas como objeto de validação.
A manipulação emocional, nesse contexto, pode ser vista como
uma tentativa de manter a coesão do ego diante de ameaças internas (como o luto
ou a perda). Ao invés de elaborar o sofrimento, o sujeito o encena, o que Freud
chama de acting out, uma atuação impulsiva que substitui a simbolização
psíquica.
Além disso, o mecanismo do recalque, que é central na teoria
freudiana, mostra como conteúdos dolorosos são excluídos da consciência, mas
retornam de forma disfarçada. A manipulação emocional pode ser uma dessas
formas de retorno: o sofrimento recalcado reaparece como performance, buscando
reconhecimento externo.
Jacques Lacan: O Desejo
do Outro e o Registro do Imaginário.
Jacques Lacan, ao afirmar que “o desejo é o desejo do Outro”,
aponta para a tendência do sujeito de buscar reconhecimento fora de si. A
manipulação emocional, nesse sentido, revela uma alienação do desejo: o
sofrimento não é vivido, mas performado para ser validado pelo olhar do
público.
Lacan retoma Freud com uma abordagem estruturalista,
enfatizando que o sujeito é constituído pela linguagem e pelo desejo do Outro.
Em sua teoria dos registros , Real, Imaginário e Simbólico, ele mostra que o
sujeito muitas vezes se fixa no Imaginário, buscando completude através da
imagem.
A manipulação emocional, nesse sentido, é uma tentativa de
capturar o olhar do Outro. O sofrimento é encenado não para ser elaborado, mas
para ser visto. O sujeito não deseja algo em si, mas deseja ser desejado e, nas
redes sociais, esse desejo se traduz em curtidas, comentários e engajamento.
Lacan também fala do gozo (jouissance), uma forma de prazer
que ultrapassa o princípio do prazer freudiano. A exposição excessiva da dor
pode ser uma forma de gozo: o sujeito se coloca em cena repetidamente, mesmo
que isso lhe cause sofrimento, porque ali encontra uma forma de existência.
Melanie Klein: Identificação Projetiva e Fantasia
Inconsciente
Melanie Klein introduz o conceito de identificação projetiva
como mecanismo pelo qual o sujeito projeta partes de si no outro, tentando
controlar suas reações. Na manipulação emocional, essa dinâmica aparece
quando o sofrimento é encenado para provocar culpa, compaixão ou submissão no
interlocutor.
Klein aprofunda a teoria das relações objetais, mostrando que
desde os primeiros meses de vida o bebê projeta partes de si nos objetos
externos (mãe, cuidadores). A identificação projetiva ocorre quando o sujeito
deposita aspectos indesejados de si no outro, tentando controlá-lo
emocionalmente.
Na manipulação emocional, esse mecanismo aparece quando o
sofrimento é encenado para provocar culpa, compaixão ou submissão. O outro é capturado pela fantasia
inconsciente do sujeito, tornando-se prisioneiro de uma narrativa emocional que
não lhe pertence.
Klein também destaca a importância das fantasias
inconscientes na organização psíquica. A exposição de crianças em situações
de vulnerabilidade, por exemplo, pode expressar fantasias de reparação ou de
controle, onde o adulto busca restaurar algo perdido em si por meio do outro,
mesmo que isso implique violação ética.
Donald Winnicott e o Falso Self
Donald Winnicott, ao discutir o falso self, alerta para o
risco de o sujeito se moldar às expectativas externas, sacrificando sua
autenticidade. Em contextos digitais, esse falso self pode se manifestar
como uma persona pública que encena emoções para manter engajamento, mesmo que
isso implique a exposição de experiências íntimas e de terceiros vulneráveis.
A Manipulação Emocional nas Redes Sociais
Na era digital, o afeto tornou-se conteúdo. Influenciadores e figuras
públicas compartilham momentos de dor, como doenças, internações, luto, em
tempo real, com estética e narrativa cuidadosamente construídas. A dor é
editada, roteirizada e monetizada. A criança hospitalizada, o pai em estado
terminal, o choro diante da câmera: tudo se torna parte de uma dramaturgia
emocional que visa engajamento.
Dois casos recentes ilustram esse fenômeno:
- Um
criador de conteúdo foi denunciado por expor menores em situações de
vulnerabilidade emocional e sexualizada, sob a justificativa de
“acolhimento”. A psicanálise interpreta essa prática como adultização
precoce e projeção do desejo inconsciente do adulto sobre a criança,
violando sua subjetividade.
- Uma
influenciadora foi criticada por compartilhar imagens de filhos
hospitalizados e do pai em estado terminal, seguidas de vídeos dançantes
em locais de luto. A exposição constante de crianças em contextos
sensuais e o uso da dor como narrativa revelam uma tentativa de manter o
narcisismo intacto diante da perda, transformando o luto em espetáculo.
A atuação de determinados criadores de conteúdo na internet
tem se mostrado fundamental para a denúncia de práticas que atentam contra os
direitos das crianças, especialmente no que diz respeito à adultização precoce,
à sexualização infantil e à exposição de comportamentos pedófilos. Ao utilizar uma linguagem acessível
e direta, esses comunicadores conseguem mobilizar o público jovem e adulto para
refletir sobre temas que, embora urgentes, muitas vezes são negligenciados
pelas instituições tradicionais.
A crítica à adultização e à erotização de crianças encontra
respaldo em pensadores como Philippe Ariès, que em sua obra História Social
da Criança e da Família revela como a infância é uma construção histórica e
cultural, e como sua proteção é uma conquista relativamente recente. Ariès mostra que, ao longo dos
séculos, a criança foi vista como um adulto em miniatura, sem direitos
próprios, o que contribuiu para práticas abusivas e negligentes.
Já Michel Foucault, em História da Sexualidade,
oferece ferramentas teóricas para compreender como os discursos sobre
sexualidade são construídos socialmente e como o poder se manifesta na
regulação dos corpos, inclusive os infantis. A exposição de conteúdos que
normalizam a erotização de crianças pode ser vista, à luz de Foucault, como uma
forma de biopoder (conceito criado por ele), um controle sutil, mas profundo,
sobre os corpos e os desejos desde a infância.
Ao denunciar conteúdos que exploram crianças de forma
sexualizada, o influenciador que denunciou a adultização de crianças e pré-adolescentes
atua como um agente de resistência, rompendo com a lógica do silêncio e da
naturalização desses abusos. Sua abordagem crítica e contundente contribui para
a formação de uma consciência coletiva que rejeita a exploração infantil e
exige responsabilização.
Quadro teórico psicanalítico da manipulação emocional
instrumental
A manipulação emocional instrumental, tal como tratada aqui,
é o uso estratégico de afetos para produzir controle, validação ou ganho
simbólico. Em Freud,
vale distinguir intensidade afetiva e representação: quando a representação
falha, o afeto procura descarga na cena, no corpo e no outro — terreno fértil
para performances que “capturam” atenção. O narcisismo encontra, nas
métricas das redes sociais, um espelho superexcitável: o Ideal de Eu toma a
forma de números e comentários, reforçando atuações em detrimento da
simbolização.
De acordo com Jacques Lacan, a lógica do desejo do Outro e do
olhar ajuda a ler a cena digital. O “Grande Outro” algorítmico oferece uma
contabilidade imaginária da falta; likes encenam reconhecimento, enquanto o
sujeito se aproxima do gozo de ser visto. Onde faltam nomeações e limites,
a imagem da criança pode deslizar para o lugar de objeto que causa desejo,
mesmo quando a intenção explícita dos adultos é “inocente”.
Melanie Klein ilumina os mecanismos de controle via
identificação projetiva: aspectos intoleráveis (impotência, tristeza,
desamparo) são evacuados para o outro e então manejados “do lado de fora” por
meio de postagens e narrativas que organizam o caos interno. Quando a
posição depressiva não se sustenta, o luto vira espetáculo, e a criança pode
ser usada como “objeto parcial” para tamponar angústias.
Donald Winnicott nos oferece critérios éticos: o holding
protege o gesto espontâneo; a intrusão precoce produz falso self. Na cultura
de exposição, o enquadre (setting) que separa público e íntimo se rompe; sem
espaço potencial, o brincar vira performance e o gesto verdadeiro cede ao gesto
rentável. A criança, convocada a sustentar o self dos adultos, arrisca-se a
perder a continuidade de ser.
Redes sociais, economia afetiva e espetacularização
As plataformas convertem afeto em visibilidade. A “economia da atenção” premia
aquilo que é imediatamente legível e intensamente compartilhável. O sofrimento
e a ternura, afetos socialmente “virtuosos”, tornam-se moeda. Nesse
circuito, a manipulação emocional instrumental prospera: choros, confissões,
cenas de cuidado ou de carência são editadas para provocar engajamento,
muitas vezes sem tempo para elaboração psíquica.
No “sharenting”( exposição sistemática de crianças por
responsáveis), o cotidiano vira conteúdo. Ainda que sem intenção sexual, certos enquadramentos,
filtros, danças e legendas adultizam: produzem uma criança para o olhar do
adulto, deslocando-a do brincar para a sedução de plateias. O risco não é só a
apropriação criminosa por terceiros; é também a colonização do campo subjetivo
pela lógica do espetáculo.
Adultização e sexualização infantil: distinções e efeitos
psíquicos
A adultização é uma atribuição de códigos, poses, discursos e
responsabilidades do mundo adulto à criança, a qual produz aceleração imaginária: “ser grande”
para corresponder ao ideal do Outro, favorecendo o falso self performático: a
criança aprende o que “funciona” para manter amor e atenção. A sexualização
ocorre pela atribuição de valor erótico ao corpo infantil, ainda que por
conotação implícita (músicas, gestos, ângulos, legendas), induzindo a confusão de fronteiras eu-corpo-outro, com
potencial de vergonha precoce e clivagens e convoca a criança a encenar um
desejo que não é seu, cristalizando-a como objeto do olhar.
Como efeitos cumulativos na criança pode-se citar:
• Clivagem e anestesia afetiva: para suportar a exposição, a
criança desliga partes sensíveis.
• Hipervigilância ao olhar externo: autoimagem regulada por
métricas; queda de autonomia lúdica.
• Dificuldade de luto e intimidade: sem bastidores, o
sofrimento perde tempo de decantação simbólica.
Implicações clínicas e éticas para pais, responsáveis, escolas,
clínicas, plataformas e autoridades:
Para pais: o direito da criança ao anonimato e ao tempo
interno precede o desejo adulto de compartilhar:
• Consentimento real: pedir, explicar, aceitar “não”;
• Critério de necessidade: antes de postar, se perguntar
“para quê?”, “para quem?”, “com qual efeito sobre ela?”;
•Enquadramento de exposição: evitar uniformes, rotas,
horários, geolocalização, imagens de banho, sono, choro ou procedimento médico;
•Decisão de não monetização: não transformar a presença da
criança em estratégia de alcance ou renda.
Para escolas:
• Política clara de imagem: autorizações específicas por
evento, armazenamento seguro, uso pedagógico estrito;
• Formação continuada: educação midiática para turmas e
famílias; linguagem acessível e não moralizante;
•Canal de proteção: protocolo para retirada imediata e
acolhimento quando houver exposição indevida.
Para clínicos e cuidadores:
• Reinstaurar mediações: fortalecer funções de holding e de
limite; sustentar tempos de luto fora do palco;
• Trabalhar o narcisismo adulto: elaborar a fome de
olhar para que a criança não a carregue.
•Oferecer espaço potencial: promover experiências não
performativas onde o gesto espontâneo possa emergir.
Para plataformas e autoridades:
• Design protetivo por padrão: contas infantis privadas,
bloqueio de DMs, proibição de anúncios segmentados;
•Moderação proativa e denúncia acessível: facilitar
remoção e rastreio, com prioridade a conteúdo infantil;
•Campanhas públicas: alfabetização afetivo-digital,
centrada em direitos da infância.
Sinais de alerta e práticas de cuidado para o cotidiano
Importante sinais a se observar:
• Foco obsessivo em métricas: humor e autoestima variam com
likes;
• Poses e falas adultizadas: repetição de gestos/slogans
sedutores para câmera;
• Desconforto após postagens: vergonha, raiva, evitação de
colegas;
• Comentário inadequado de terceiros: sexualizados,
insistentes ou invasivos.
Práticas de cuidado:
• Regra do “delay”: se for compartilhar, poste depois, não
em tempo real (prática de cuidado extensiva a todos que utilizam redes
sociais);
• Desidentificação: evitar nome completo, escola, uniforme,
placas, localização;
• Círculos restritos: uso de álbuns privados e
compartilhamento pontual com familiares, mesmo assim seguindo pensamentos e
cuidados já supracitados;
•Revisões periódicas: limpar acervos antigos, a criança pode
“revogar” consentimentos à medida que se desenvolve;
•Conversas francas: educação afetivo-digital adequada à idade
sobre corpo, privacidade e pedidos de imagem.
A cultura das (e nas) redes sociais não inventou o narcisismo nem a
manipulação afetiva, mas radicalizou sua visibilidade e velocidade. Quando a imagem da criança vira
atalho para validação, e o luto, matéria de espetáculo, perdemos mediações que
protegem o gesto vivo e a dor legítima. O trabalho ético-clínico é devolver
bordas: reinstaurar tempo, resguardo e nomeações que retirem a criança do lugar
de objeto do olhar e a recolocam como sujeito em formação. O que vale como
bússola é simples e exigente: se não promove a continuidade de ser da
criança, não precisa estar online.
Portanto, a importância desse tipo de atuação vai além da
crítica pontual: ela se insere em um movimento mais amplo de defesa da
infância, de combate à pedofilia e de questionamento das estruturas que
perpetuam a violência simbólica e física contra os mais vulneráveis. Ao
trazer à tona essas questões, busca-se o alinhamento a uma tradição intelectual
que procura compreender e transformar as relações de poder que atravessam a contemporaneidade.
A manipulação emocional instrumental, quando praticada em
ambientes digitais, revela uma falência simbólica: o sujeito não consegue
elaborar internamente o sofrimento e, por isso, o externaliza em busca de
validação. A dor deixa de ser vivida e passa a ser encenada. Na psicanálise
contemporânea, faz-se necessário integrar o pensamento clínico com os desafios
éticos e tecnológicos atuais.
É urgente repensar os limites entre o íntimo e o público,
entre o cuidado e o espetáculo, entre o afeto genuíno e sua instrumentalização. A escuta clínica deve se expandir
para compreender os novos modos de subjetivação e os riscos da
espetacularização do afeto, especialmente quando envolve sujeitos em formação,
como crianças.
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