Clássicos do Cinema: ‘As Duas Faces de Um Crime’ (Primal Fear)
O filme As Duas Faces de Um Crime (Primal Fear,
1996), é um thriller psicológico de tribunal baseado no romance
homônimo de suspense de 1993 escrito pelo autor norte-americano William Diehl, o qual explora temas como
identidade, manipulação e trauma. A interessante análise psicanalítica dos
personagens principais, Martin
Vail (Richard Gere), um advogado de defesa egocêntrico que decide representar
Aaron Stampler (Edward Norton), um jovem coroinha acusado do brutal assassinato
de um arcebispo em Chicago, Illinois EUA, pode revelar camadas profundas de
conflito interno e mecanismos de defesa, pois o enredo se desenrola como um
jogo de manipulação e revelações surpreendentes, explorando temas como justiça,
moralidade e transtorno dissociativo de identidade.
O filme aborda temas profundos e complexos, e tornou-se um thriller jurídico clássico, explorando temas que contribuem para a atmosfera tensa e imprevisível do filme, e mantendo o espectador intrigado até o último momento:
- Moralidade
e Justiça – O
filme desafia o espectador a refletir sobre o que é certo e errado,
expondo as falhas do sistema judicial norte-americano e as escolhas éticas
dos personagens, exploradas através do advogado Martin Vail, que
inicialmente aceita o caso por interesse próprio, mas acaba confrontado
com dilemas éticos ao longo do julgamento.
- Manipulação
e a Verdade - Permeiam
toda a trama, pois tanto Vail quanto Aaron Stampler jogam com as
percepções do tribunal e do público, distorcendo fatos para atender a seus
próprios interesses, revelando como a verdade pode ser distorcida para
atender a diferentes interesses, tanto dentro quanto fora do tribunal.
- Corrupção
Institucional –
O filme sugere que a corrupção pode estar presente em instituições que
deveriam ser moralmente irrepreensíveis, como a Igreja e o sistema
jurídico.
- Complexidade Humana – Nenhum personagem é completamente inocente ou culpado. A complexidade humana é evidenciada na dualidade de Aaron, que alterna entre sua personalidade tímida e frágil e a agressiva e calculista Roy. Esse aspecto se conecta diretamente ao transtorno dissociativo de identidade, que serve como base para a defesa de Vail e desafia a compreensão do público sobre a verdadeira natureza do acusado. A defesa de Aaron se baseia na alegação de que ele sofre desse transtorno, alternando entre sua personalidade dócil e o agressivo Roy. Essa dualidade é essencial para o desenrolar do enredo.
Psicanalistas clássicos poderiam interpretar As Duas Faces de Um Crime sob diferentes perspectivas, explorando os temas do enredo:
Freud: O conflito entre id, ego e superego
Sigmund Freud poderia interpretar o protagonista, Aaron
Stampler, como aparentemente um sujeito
dividido entre o id, que representa impulsos primitivos e agressivos, e
um ego fragilizado, que tenta manter uma fachada de inocência. O superego,
que internaliza normas morais, parece estar ausente ou distorcido, permitindo
que Aaron manipule aqueles ao seu redor sem culpa aparente, o que acontece com
a personagem da psiquiatra Doutora Molly Arlington (Frances
McDormand). A dualidade entre Aaron e Roy
então poderia ser vista por Freud como uma manifestação do conflito entre o id
(impulsos primitivos e agressivos) e o ego (parte racional que busca
adaptação social). Aaron representa o ego tentando manter uma fachada de
inocência, enquanto Roy personifica o id, revelando impulsos violentos
reprimidos.
Jacques Lacan: O sujeito dividido e a máscara do eu
Para Lacan, Aaron encarnaria o conceito de sujeito dividido,
onde há uma cisão entre o registro simbólico (a identidade socialmente
aceita) e o registro real (seus impulsos violentos). Sua persona de
jovem tímido e indefeso poderia ser vista como um semblante, uma máscara
que esconderia sua verdadeira estrutura psíquica, sustentada por um jogo
de linguagem e manipulação, jogo este no qual a promotora Janet
Venable (Laura Linney) é uma das poucas personagens que não se
deixa enganar completamente por Aaron Stampler. Embora o tribunal aceite a
defesa baseada no transtorno dissociativo de identidade, Janet mantém uma
postura cética em relação à verdadeira natureza de Aaron.
Carl Jung: Arquétipos e sombra
Jung poderia interpretar Aaron como um exemplo do arquétipo da sombra, que representa os aspectos reprimidos e sombrios da psique. Sua aparente ingenuidade contrasta com sua agressividade latente, sugerindo um conflito entre sua persona e sua sombra. O advogado Martin Vail, por sua vez, poderia ser visto como alguém que enfrenta sua própria sombra ao perceber que sua busca por fama o cegou para a verdade.
Donald Winnicott: Falso self e manipulação
Winnicott introduziu o conceito de falso self, uma
identidade construída para se adaptar às expectativas externas. Aaron parece
operar dentro dessa lógica, apresentando um self frágil e vulnerável para
enganar aqueles ao seu redor. Sua verdadeira identidade, no entanto, emerge
como um self destrutivo, incapaz de estabelecer vínculos genuínos. O
personagem Aaron/Roy não demonstra apego emocional autêntico a ninguém. Sua
relação com o arcebispo, por exemplo, é marcada por abuso e submissão, sem
qualquer demonstração de afeto genuíno. Já com o advogado Martin Vail, ele
finge gratidão e dependência, o que na verdade é manipulação calculada. Essa incapacidade de
criar laços verdadeiros pode ser interpretada como um traço psicopático, onde a
empatia é simulada para atingir objetivos pessoais.
Melanie Klein: Posição esquizoparanóide e divisão do objeto
A teoria de Melanie Klein sugere que indivíduos em estados primitivos de angústia podem dividir objetos em bons e maus. Klein provavelmente observasse Aaron como alguém que opera dentro da posição esquizoparanóide, onde sua identidade se fragmenta entre o inocente e o agressor. Sua manipulação poderia ser interpretada como uma tentativa de evitar a integração desses aspectos, mantendo uma divisão rígida entre suas facetas. Aaron apresenta uma divisão clara entre sua personalidade dócil e frágil (Aaron) e sua persona agressiva e manipuladora (Roy). Essa cisão pode ser vista como um mecanismo de defesa contra angústias profundas, onde ele separa aspectos bons e maus de si mesmo para evitar o sofrimento psíquico. Em termos kleinianos, essa divisão reflete a tentativa de manter o "bom self" protegido da destruição pelo "mau self". A posição esquizoparanóide também envolve a projeção ou identificação projetiva, onde sentimentos intoleráveis são deslocados para o ambiente externo.
No enredo, Aaron induz sentimentos nos outros para manipulá-los. Ao assumir a identidade de Roy, Aaron projeta sua agressividade e impulsos destrutivos para fora, criando uma persona que age sem remorso. Isso permite que sua identidade "Aaron" permaneça aparentemente inocente e vulnerável, com efeito calculadamente manipulador àqueles que o tentam ajudar, demonstrando um domínio sobre a percepção dos outros, falta de empatia e ausência de culpa. Sua capacidade de enganar até mesmo especialistas sugere um funcionamento psíquico onde o outro é apenas um objeto a ser usado para seus próprios fins.
Mas assim como a personagem da promotora do caso, o
investigador no filme Tommy Goodman (Andre Braugher), mantém
uma postura cética em relação à história contada por Aaron Stampler, não
acreditando na versão de Aaron porque percebe inconsistências em seu
comportamento e nas evidências do caso. Enquanto Martin Vail, o advogado de
defesa, se deixa envolver pela aparente fragilidade de Aaron, Goodman mantém
uma abordagem mais objetiva e analítica, suspeitando desde o início de Aaron
esteja manipulando a todos e que sua personalidade tímida seja apenas uma
fachada para esconder sua verdadeira natureza.
O filme nos convida a refletir sobre os limites da identidade e da verdade, mostrando como a psicanálise pode iluminar aspectos profundos da subjetividade humana, expondo as falhas na percepção humana, onde a manipulação pode ser mais poderosa do que qualquer sistema legal, e que a verdade não é um conceito absoluto, mas sim algo que pode ser construído e distorcido por aqueles que sabem como manipulá-la.
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