Aldous Huxley e o Recalque na Psicanálise

 


O livro As Portas da Percepção (1954), de Aldous Huxley, é uma obra que examina as experiências do autor com substâncias psicodélicas como a mescalina e suas considerações sobre a percepção humanada realidade. Huxley argumenta que o cérebro e os sentidos funcionam mais como filtros que eliminam informações do que como produtores de realidade, permitindo que apenas uma fração da experiência total chegue à consciência. Essa ideia é com frequência relacionada com conceitos psicanalíticos como o recalque, processo que impossibilita que pensamentos, memórias ou desejos perturbadores cheguem à consciência, excluindo inconscientemente para que não causem angústia.

 

Sigmund Freud, ao introduzir o conceito de recalque, estabeleceu um dos pilares da psicanálise. Freud descreveu o recalque como um mecanismo de defesa inconsciente que impede que conteúdos psíquicos perturbadores ou inaceitáveis entrem na consciência como uma forma de proteger o ego de conflitos internos e de experiências traumáticas. Esses conteúdos, como desejos ou memórias, são impelidos para o inconsciente, mas continuam a influenciar a vida psíquica do indivíduo, revelando-se em sonhos, sintomas neuróticos ou lapsos.

Freud também ressaltou o fenômeno do "retorno do reprimido", onde os conteúdos recalcados emergem indiretamente, na maioria das vezes  causando angústia. O recalque é, portanto, um processo ativo, no qual a psique rejeita impulsos ou ideias que poderiam ensejar sofrimento. Além de Freud, outros autores exploraram o recalque em diferentes contextos.  

 

Jacques Lacan procurou reinterpretar o conceito de recalque freudiano dentro da sua ‘teoria dos três registros psíquicos’: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Esses registros são extremamente importantes para a compreensão de como o indivíduo se estrutura e interatua com o mundo.

1.       O Real: Representa tudo aquilo que é inacessível à linguagem e à simbolização. É o que não pode ser plenamente integrado ao sistema simbólico do indivíduo, como traumas ou outras experiências que escapam à representação. O recalque, dentro desse contexto, deve ser visto como uma tentativa de afastar o indivíduo do confronto direto com o Real, que gera angústia e é impossível de ser plenamente assimilado.

2.      O Simbólico: Relacionado à linguagem e aos sistemas de significação que estruturam o inconsciente, segundo Lacan ocorre  principalmente no nível simbólico, onde certos significantes são excluídos ou suprimidos, mas continuam a atuar no inconsciente. A linguagem, então, é o meio pelo qual o recalque se manifesta e também pelo qual o indivíduo consegue acessar o inconsciente.

3.      O Imaginário: Refere-se às imagens e introjeções que o indivíduo constrói, em sua maioria relacionadas ao ego. O recalque no Imaginário pode envolver o afastamento de aspectos da identidade ou de imagens que o indivíduo considera perturbadoras ou incompatíveis com sua autoimagem.

Lacan relaciona o recalque à estruturação do inconsciente, mostrando que ele não é apenas um mecanismo de defesa, mas também um processo que constrói a subjetividade. A linguagem, como elemento central do registro simbólico, é o que permite ao indivíduo argumentar, discutir e, eventualmente, confrontar os conteúdos recalcados.

 

Melanie Klein elaborou uma ótica inovadora ao conceito de recalque ao incorporá-lo à sua ‘teoria das fantasias inconscientes e dos mecanismos de defesa primitivos’, como a cisão e a projeção. Para Klein, as fantasias inconscientes são temas centrais na vida psíquica desde os primeiros instantes do desenvolvimento humano, moldando a relação do indivíduo com o mundo interno e externo.

 

Fantasias Inconscientes

Klein pondera que as fantasias inconscientes são expressões dos impulsos agressivos e libidinais do indivíduo, não sendo apenas  representações mentais, mas também possuidoras de componentes somáticos, ao conectar o corpo e a mente. Essas fantasias são essenciais   para a formação da personalidade e influenciam a maneira como o indivíduo trata suas ansiedades e desejos.

Mecanismos de Defesa Primitivos

1.       Cisão: A cisão é um mecanismo de defesa primitivo que Klein identificou como primordial nos primeiros estágios do desenvolvimento humano, ocorrendo quando o indivíduo identifica e divide os objetos (e a si mesmo) em "bons" e "maus" para conseguir lidar com sentimentos contraditórios, como o amor e o ódio. Essa divisão ajuda a proteger o ego de angústias intensas, mas pode também levar a uma impressão fragmentada da realidade.

2.      Projeção: A projeção é outro mecanismo de defesa primitivo salientado por Melanie Klein, onde o indivíduo imputa seus próprios sentimentos ou impulsos inaceitáveis a objetos externos. Por exemplo, sentimentos de violência ou agressividade sentidos na infância do indivíduo podem ser projetados em outra pessoa, permitindo o distanciamento desses impulsos internos.

Relação com o Recalque

O recalque na visão kleiniana está intrinsecamente conectado a esses mecanismos de defesa. As fantasias inconscientes e os conteúdos recalcados geral e frequentemente se manifestam através da cisão e da projeção, modelando a dinâmica psíquica do indivíduo. Klein evidencia que esses processos não são apenas processos defensivos, mas também processos estruturantes, que contribuem para a formação do inconsciente e das relações objetais.

 

Carl Gustav Jung estruturou uma abordagem única ao conceito de recalque, integrando-o a sua ‘teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos’, estabelecendo que o recalque se restringe apenas ao inconsciente pessoal como proposto por Freud, mas também pode abarcar conteúdo do inconsciente coletivo, camada mais profunda e universal da psique humana.

O Inconsciente Coletivo e os Arquétipos

Jung compreendeu o inconsciente coletivo como um reservatório de experiências herdadas da humanidade, composto pelos padrões universais chamados arquétipos, imagens primordiais que se manifestam em sonhos, mitos, lendas e símbolos culturais. Exemplos de arquétipos incluem o Pai, a Criança, o Herói, o Sábio, a Sombra e a Grande Mãe, transcendendo barreiras culturais e temporais e refletindo aspectos fundamentais da experiência humana.

O Recalque na Perspectiva Junguiana

Na visão junguiana o recalque pode acontecer não apenas em relação a conteúdos pessoais, mas também em relação a aspectos do inconsciente coletivo. Por exemplo, um indivíduo pode reprimir imagens ou impulsos arquetípicos que entram em conflito com valores culturais ou com sua identidade consciente, levando potencialmente a uma desconexão com aspectos essenciais da psique e resultando em desequilíbrios emocionais ou psicológicos. Segundo Jung, embora o recalque possa ser fonte de sofrimento, ele também desempenha um papel primordial no processo de individuação, caminho para a integração e realização do Self, a totalidade da psique. Ao confrontar e integrar os conteúdos recalcados, tanto do inconsciente pessoal quanto do coletivo, o indivíduo em geral alcança um maior equilíbrio e autoconhecimento.

 

Wilfred Bion trouxe um pensamento inovador à psicanálise ao introduzir o conceito de função alfa, essencial para a perlaboração emocional e mental. Segundo Bion, a função alfa seria a capacidade da psique em transformar experiências sensoriais brutas e caóticas, os  elementos beta, em pensamentos simbólicos e processáveis, os elementos alfa, sendo esse processo fundamental para a formação de símbolos, que permitem então ao indivíduo compreender e integrar suas experiências emocionais.

Relação entre Recalque e Função Alfa

Quando a função alfa está comprometida, o indivíduo não consegue transformar os elementos beta em elementos alfa, resultando em um recalque ainda mais primitivo, e onde as experiências emocionais permanecem fragmentadas e não simbolizadas. Esses conteúdos recalcados podem gerar angústia e dificultar o desenvolvimento emocional e cognitivo, além de impactar o estabelecimento de relações interpessoais saudáveis.

Tolerância à Frustração

Bion destacou que a capacidade de tolerar frustrações é primordial para o desenvolvimento da função alfa, sugerindo que, ao enfrentar frustrações, o aparelho psíquico desenvolve a habilidade de pensar sobre essas experiências, assim transformando-as em elementos alfa, e sendo um processo crucial para a formação de um mundo interno coerente e para o crescimento emocional. Na prática clínica, a teoria de Bion tem implicações relevantes: o psicanalista pode ajudar o paciente a desenvolver sua função alfa, ajudando-o a promover sua capacidade de simbolizar e processar emoções. Isso envolve criar um setting analítico seguro onde o paciente possa explorar suas experiências fragmentadas e recalcadas, permitindo que elas sejam integradas a sua psique.

 

Assim, pode-se entender melhor a conexão entre As Portas da Percepção, de Aldous Huxley e o conceito psicanalítico de recalque, o qual repousa na ideia central de que a mente humana restringe a percepção da realidade como uma forma de proteção ou adaptação.

Em seu livro, Huxley descreve o cérebro como um mecanismo de "redução de válvulas", responsável por filtrar a vastidão da realidade sensorial e permitir que apenas uma quantidade manejável de informações chegue à consciência. Esse processo protegeria o indivíduo do que poderia ser uma sobrecarga sensorial, mas também excluiria certos aspectos da experiência que poderiam ampliar a compreensão da realidade. No campo psicanalítico, o recalque atua de maneira semelhante ao proteger o ego, mantendo conteúdos psíquicos perturbadores fora da consciência, embora tais conteúdos continuem a exercer influência no inconsciente.

A interpretação de Huxley e as ideias expostas pelos renomados psicanalistas supracitados observam que a psique não lida diretamente com a totalidade da realidade, seja através de mecanismos neurobiológicos ou psíquicos, possuindo um filtro que assegura um funcionamento equilibrado, sendo este ao custo de excluir certas dimensões da experiência.

Na psicanálise, Freud argumentou que os conteúdos recalcados não desaparecem, mas retornam de maneira disfarçada, como em sonhos, sintomas ou atos falhos. Huxley, por sua vez, sugeriu que o uso de substâncias psicodélicas como a mescalina pode "abrir" as portas da percepção, permitindo acesso a experiências normalmente suprimidas pelo filtro cerebral, sendo esse acesso interpretado como uma forma de confrontar o recalque e trazer à consciência conteúdos normalmente inacessíveis e, possivelmente, assim promover a integração desses elementos na psique.

Enquanto Huxley promove a dimensão perceptiva e sensorial do filtro da mente, a psicanálise destaca os impulsos emocionais, memórias e desejos recalcados para proteger o ego. No entanto, em ambos as abordagens, existe um denominador comum que é o entendimento de que uma realidade maior e mais complexa que é "oculta" pode ser acessada sob condições especiais, evidenciando como o recalque pode ser entendido não apenas como um mecanismo de defesa da psique, mas também como parte de um processo que molda a experiência da realidade.

Essa integração de insights permite assim uma visão ampliada de que tanto a psicanálise quanto a obra de Huxley destacam como o ser humano vive uma realidade filtrada, seja por processos biológicos ou inconscientes e quando esses filtros são temporariamente suspensos ou superados, existe o potencial de uma maior compreensão de si mesmo e do mundo.

 

 

 

 

 

 


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