A Experiência de Quase Morte(EQM) e o Narcisismo
A experiência de quase morte (EQM), especialmente
em situações traumáticas como por exemplo um atentado à bala, pode ter impactos
profundos na psique de um indivíduo. Segundo pesquisas, essas experiências
podem alterar significativamente a percepção da realidade e a identidade do
sujeito.
Autores da psicanálise, como Otto Kernberg,
destacam que o transtorno de personalidade narcisista pode ser
exacerbado por eventos traumáticos que reforçam mecanismos de defesa como a
grandiosidade e a dissociação. A EQM pode intensificar sentimentos de
invulnerabilidade ou reforçar uma visão distorcida de si mesmo, levando a uma
maior rigidez na estrutura narcisista. Além disso, experiências traumáticas de
quase morte podem romper certezas existenciais e gerar conflitos psicológicos
profundos.
O impacto psicológico de uma EQM pode incluir estados de
hiper vigilância, conforme descrito no DSM-5, o que pode contribuir para
padrões de comportamento defensivos e reforçar traços narcisistas. Estudos
indicam que indivíduos que passam por EQMs perturbadoras podem desenvolver
dificuldades de integração dessas vivências na vida cotidiana, o que pode
resultar em transtornos como depressão grave e estresse pós-traumático.
A psicanálise oferece diferentes maneiras para a compreensão
de como eventos traumáticos – incluindo experiências de quase morte (EQM) –
podem intensificar os mecanismos de defesa associados ao transtorno de
personalidade narcisista. Aqui estão algumas delas:
1- Sigmund Freud e a Dinâmica Narcisista
Sigmund Freud, em textos como Introdução ao
Narcisismo (1914), sugeriu as bases do conceito de investimento
libidinal no próprio ego. Para Freud, o narcisismo – tanto em suas
formas primárias quanto secundárias – tem uma função protetiva, ao mesmo tempo
em que pode ser fonte de vulnerabilidade. Um acontecimento traumático
extremo, como uma EQM, pode representar um choque que reativa antigos
investimentos libidinais no ego, levando a uma defesa exagerada na forma de
grandiosidade. Freud não tratou especificamente de EQMs, mas seu
enquadramento teórico permite compreender que, diante da ameaça à continuidade
da vida, o ego pode intensificar o mecanismo de dissociação para se
manter “intacto,” transformando a experiência traumática em uma narrativa de
invulnerabilidade e "destino especial".
2- Heinz Kohut e a Fragilidade do Self
Em contraposição à ênfase de Kernberg na rigidez e na
agressividade das estruturas narcisistas, Heinz Kohut propõe uma abordagem que
valoriza o desenvolvimento de um self sintônico. Em sua obra The
Analysis of the Self, Kohut sugere que traumas intensos podem interromper o
processo de formação e integração do self, especialmente quando há falhas nas
relações objetais precoces que deveriam oferecer espelhamento e validação.
Nessa visão, uma EQM pode atuar como um divisor de águas: a experiência
de quase morte agrava a sensação de desintegração interna, levando o indivíduo
a buscar, de forma angustiante e desesperada, uma compensação por meio de uma
grandiosidade reativa. Assim, a dissociação emerge não somente como
uma fuga dos sentimentos dolorosos, mas também como um mecanismo de defesa que
impede a assimilação adequada do trauma, reforçando a ilusão de um self
grandioso e invulnerável.
3- Otto Kernberg e o Aguçamento dos Mecanismos de Defesa
Otto Kernberg, em obras como Borderline Conditions
and Pathological Narcissism, descreve o transtorno narcisista como
resultado de estruturas psíquicas definidas por defesas rígidas e polarizadas.
Segundo Kernberg, quando um indivíduo com traços narcisistas enfrenta
um evento traumático extremo como uma EQM, a ameaça à integridade do self pode suscitar
uma recrudescência das defesas – a dissociação atua para separar mentalmente
aspectos dolorosos da realidade, enquanto a grandiosidade funciona como uma
proteção, criando uma sensação ilusória de invulnerabilidade. Essa exacerbação
dos mecanismos de defesa visa manter a estabilidade do ego, mas, ao mesmo
tempo, pode aprofundar o isolamento e a fragmentação interna que
caracterizam o transtorno.
Comparação Unificadora entre as Abordagens
Apesar das diferenças, os três autores convergem ao
reconhecer que eventos traumáticos podem provocar uma intensificação
dos mecanismos defensivos no transtorno de personalidade narcisista. Kernberg
foca na estrutura patológica e na dinâmica agressiva do ego que, ao ser
confrontado com o trauma, recorre à dissociação e à grandiosidade de forma
rígida; Kohut, por sua vez, evidencia a fragilidade subjacente do self e a
necessidade de manter a coesão interna, estratégias compensatórias que se
manifestam por meio de uma grandiosidade reativa e da dissociação. Freud nos oferece
uma perspectiva onde o investimento libidinal no próprio ego, se reorganizado
abruptamente pelo trauma, pode reforçar a ilusão de invulnerabilidade que é
central ao narcisismo. Assim, a EQM, ao confrontar o indivíduo com a
iminência da morte, atua como um catalisador que potencializa essas respostas
defensivas – ao mesmo tempo que reforça a crença interna de ser
singular e imune, mas também aprofundando a dicotomia entre a grandiosidade e a
insegurança interna.
Faz-se necessário ressaltar que, enquanto a grandiosidade
pode ser interpretada pelo indivíduo como uma prova de sua invulnerabilidade,
ela é, paradoxalmente, uma estratégia que mascara a fragilidade
fundamental do self. Em contextos de EQM, essa dinâmica defensiva pode se
tornar ainda mais intensa, levando a um ciclo no qual a dissociação
protege o ego, mas impede a integração e a resolução dos conflitos internos. Abordagens
clínicas contemporâneas na psicanálise tentam integrar esses modelos teóricos,
explorando também as dimensões do self a partir de outras perspectivas, como a
de Winnicott, que diferencia o self verdadeiro do self falso.
Essa diversidade teórica pode ensejar a compreensão dos
fenômenos traumáticos e de sua interação com transtornos de personalidade,
esclarecendo situações complexas para a intervenção terapêutica no setting
analítico, incluindo as experiências de quase morte (EQM), onde os mecanismos
de defesa em indivíduos com transtorno de personalidade narcisista podem ser
majorados, mostrando que o fato de uma ameaça extrema ao self pode intensificar
defesas já presentes, particularmente a grandiosidade (como
uma forma de afirmar uma invulnerabilidade ilusória) e a dissociação (um
mecanismo para separar partes dolorosas da realidade).
Em um cenário onde uma EQM se apresenta, observa-se uma
possível intensificação da dissociação do
indivíduo para evitar a assimilação do trauma, e ao mesmo tempo que exibe uma
grandiosidade exacerbada que compensa a ameaça percebida à integridade do self,
podendo o trauma não apenas dificultar a aproximação
terapêutica dentro do setting analítico, mas também intensificar as
defesas narcisistas, evidenciando a importância de uma intervenção
que leve em conta a vulnerabilidade subjacente e o contexto emocional do
paciente.
No caso do transtorno narcisista, a dissociação e a exaltação
de uma grandiosidade podem estar funcionando de forma análoga: a
tentativa de afastar a experiência dolorosa e ameaçadora, mantendo uma imagem
"inabalável" de si mesmo. Assim, mesmo diante de eventos
traumáticos – seja em desastres naturais, atentados ou outros tipos de EQM, o
padrão reativo do ego pode se estruturar de forma que a narrativa interna de
invulnerabilidade se fortaleça, apesar de na verdade mascarar uma profunda
fragilidade emocional, como já visto.
Portanto, em nível individual, esses eventos podem suscitar
uma recalibração do self, reforçando defesas como a dissociação e a
grandiosidade – estratégias que, apesar de oferecerem uma proteção temporária,
acabam impedindo a integração saudável do trauma, onde contextos emocionais
e culturais desempenham um papel primordial, onde a resposta defensiva
mostra-se muito mais ostensiva do que a observada em contextos coletivistas como
situação de guerra, catástrofes naturais etc.
Sob o olhar psicanalítico, a integração de experiências
traumáticas – como aquelas associadas a eventos de quase morte (EQM) –
demanda a utilização de estratégias no setting analítico que podem ir
além do processo analítico clássico, possibilitando assim a incorporação de
ferramentas que possam ajudar na elaboração de conteúdos dissociados e na
reconstrução de um self mais resiliente e coeso, podendo ser modulada por rede
de suporte interdisciplinar e por relações interpessoais, ressaltando a
importância de abordagens terapêuticas sensíveis à cultura e à complexidade dos
processos psicológicos envolvidos já observados aqui no texto. Essas abordagens
são cruciais para que o sofrimento relacionado à EQM, por exemplo, seja
progressivamente integrado à narrativa interna do paciente, promovendo
um self que reconhece sua fragilidade sem se perder na grandiosidade ilusória.
Comentários