Clássicos do Cinema: O Mágico de Oz (The Wizard of Oz) e a Interpretação dos Sonhos
Este ensaio propõe uma análise psicanalítica do filme O
Mágico de Oz (1939), vinculando os conceitos fundamentais da teoria dos
sonhos de Sigmund Freud e Carl Gustav Jung com contribuições contemporâneas
de autores como André Green e Luiz Alfredo Garcia-Roza. A narrativa onírica de
Dorothy poderia assim ser interpretada como metáfora do inconsciente e do
processo de individuação, revelando a riqueza simbólica deste clássico do
cinema mundial como expressão de conflitos internos, desejos reprimidos e busca
de integração psíquica.
O filme de 1939 começa com a personagem Dorothy Gale, uma
menina de aproximadamente 11 anos (idade coerente com a obra original de L.
Frank Baum, onde Dorothy é descrita como uma criança, embora sem especificar
exatamente sua idade) vivendo em uma fazenda no interior do estado
norte-americano do Kansas com seus tios Henry e Em, em um ambiente cinzento e de
atmosfera opressora bem marcante.
Após um tornado, ela é transportada para a colorida e
fantástica Terra de Oz. Essa transição poderia ser interpretada como a passagem
do estado de vigília para o mundo onírico, onde os desejos e conflitos
inconscientes ganham forma simbólica. O Mágico de Oz, ambos livro e
filme, se tornaram famosos pela utilização da lógica dos sonhos,
onde as personagens da vida real de Dorothy são reinterpretados em papéis
fantásticos dentro do mundo onírico de Oz. O filme também se utiliza do clichê universal
de que os sonhos são coloridos, enquanto a realidade é em preto e branco.
Cada personagem que Dorothy encontra representaria aspectos
psíquicos dela mesma:
- Homem
de Lata: desejo
de um coração → função afetiva.
- Espantalho: desejo de inteligência → função
cognitiva.
- Leão
Covarde: desejo
de coragem → função volitiva.
Esses personagens poderiam ser vistos como fragmentos do
self que buscam integração, uma ideia que repercute a teoria junguiana da individuação,
que será mostrada mais adiante.
Poder-se-ia interpretar a estrada de tijolos amarelos como um
símbolo da psicanálise: a jornada do autoconhecimento. Por exemplo, a
figura do Mágico de Oz, inicialmente idealizada como onipotente, revela-se um
homem comum, o que poderia ser interpretado como a desconstrução de defesas
psíquicas e a descoberta de que os recursos buscados estariam dentro da
própria Dorothy. Sua volta para casa no final do filme representaria o retorno
à consciência, agora transformada pela integração dos conteúdos
inconscientes.
Sigmund Freud e o Sonho como Realização de Desejo
Na obra A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud
afirma que os sonhos são realizações disfarçadas de desejos reprimidos, uma via
privilegiada de acesso ao inconsciente. Ele introduz os conceitos de conteúdo
manifesto (o que é lembrado do sonho) e conteúdo latente (os desejos
inconscientes que o originam). O sonho, para Freud, é a “estrada real para o
inconsciente”.
Freud também descreve mecanismos como:
- Condensação:
fusão de múltiplos elementos em uma única imagem onírica.
- Deslocamento:
transferência de significados de um objeto para outro.
- Censura
onírica: distorção dos desejos inconscientes para que passem despercebidos
pela consciência.
Freud percebe o sonho como uma realização disfarçada de
desejos reprimidos e o cinema tornou-se um campo fértil para a expressão
simbólica desses conteúdo, notadamente no filme O Mágico de Oz, cuja
data de lançamento coincide com o ano da morte de Freud, falecido em 23 de
setembro de 1939, aos 83 anos, em Londres, Inglaterra, para onde havia se
mudado em 1938, fugindo da perseguição nazista na Áustria.
Em O Mágico de Oz, o mundo de Oz representaria o
conteúdo latente do sonho de Dorothy, enquanto o Kansas cinzento simbolizaria a
realidade consciente. Os mecanismos de condensação e deslocamento estão
presentes na transformação de figuras do cotidiano da menina em personagens
fantásticos, por exemplo a vizinha Almira Gulch se torna a Bruxa Má do Oeste.
A jornada de Dorothy poderia ser vista como um processo de
elaboração onírica, no qual o desejo de escapar da repressão cotidiana se
manifesta em uma aventura simbólica, sendo sua volta para casa uma resolução do
conflito psíquico e o retorno à consciência transformada, é interessante
ressaltar.
Carl Jung e a Jornada de Individuação
Carl Jung, nascido em 26 de julho de 1875 na Suíça e falecido em 6 de junho de 1961 no
mesmo país, foi um dos pensadores mais influentes do século XX, desenvolvendo a
psicologia analítica e amplificando a interpretação dos sonhos de Freud ao
introduzir o conceito de inconsciente coletivo e arquétipos, observando os
sonhos como expressões simbólicas do inconsciente coletivo.
Segundo Jung, os
sonhos não são apenas manifestações de desejos individuais como proposto por
Freud, mas também expressam arquétipos universais, símbolos e imagens
compartilhados por toda a humanidade, que emergem do que ele chamou de inconsciente
coletivo.
No O Mágico de Oz, essa visão junguiana se manifestaria
de forma rica e simbólica:
1. Arquétipos Universais em Oz
- A
Jornada da Heroína: a personagem de Dorothy representaria o arquétipo do Herói em
busca de integração e sentido. Sua jornada pela estrada de tijolos
amarelos seria uma metáfora da jornada de individuação: o processo de
tornar-se quem se é, integrando os opostos da psique.
- A
Sombra: A Bruxa
Má do Oeste encarnaria a Sombra, o lado rejeitado e temido da
personalidade. Enfrentá-la é essencial para o crescimento psíquico da
personagem.
- O
Velho Sábio: O
Mágico de Oz, apesar de ser um charlatão, representaria o arquétipo do
Velho Sábio, o que guia, mesmo que de forma falha, o processo de
autoconhecimento.
- O
Anima/Animus:
Os três companheiros — Espantalho, Homem de Lata e Leão — poderiam ser
vistos como aspectos do Animus, princípio masculino interior da psique
feminina, e que ajudariam Dorothy a integrar razão, emoção e coragem.
- A
Grande Mãe:
Glinda, a Bruxa Boa do Sul, representaria o arquétipo da Mãe Benevolente,
que orienta e acolhe.
Oz não é apenas um lugar fantástico — é um espaço
simbólico, onde os conteúdos do inconsciente coletivo ganham forma. A
transição do Kansas (realidade cinzenta) para Oz (mundo colorido) simbolizaria
a entrada no mundo interior, onde os arquétipos se manifestam com força.
A Cidade das Esmeraldas representaria um estágio da jornada
do herói (no caso da heroína) em que o ego é confrontado com o desconhecido. Os
óculos verdes que todos na cidade utilizam simbolizariam a persona, a máscara
social que distorce a realidade.
A Individuação Para o Retorno ao Lar
O conceito de individuação desenvolvido por Carl Jung,
é um dos pilares da psicologia analítica e refere-se ao processo pelo qual uma
pessoa se torna psiquicamente inteira e única, integrando os diversos
aspectos da sua personalidade — tanto conscientes quanto inconscientes.
São elementos centrais neste processo:
· Ego: é o
centro da consciência, a parte que diz “eu sou”, porém, sendo ele apenas uma
fração da psique;
· Inconsciente Pessoal: contém memórias esquecidas, complexos e conteúdos reprimidos.
· Inconsciente Coletivo: hospeda os arquétipos, imagens universais como a Grande Mãe, o Herói e
a Sombra.
· Self: centro e
totalidade da psique, representa o objetivo final da individuação: ser quem
se é em essência.
Segundo Jung, o processo de individuação se dá por meio do confronto
com a Sombra, onde se reconhece e são integrados os aspectos rejeitados de si
mesmo; o diálogo com os arquétipos, feito por meio de sonhos, mitos, arte e símbolos; transformações e crises, que seriam
momentos de ruptura que forçam o ego a se reorganizar e a busca de sentido, na
qual a individuação é também uma jornada espiritual e simbólica.
Em Oz, Dorothy encontra, como já supracitado, as figuras
arquetípicas do Espantalho (intelecto), do Homem de Lata (emoção), e do Leão
(vontade), companheiros que ajudam na integração de aspectos internos, ou seja,
representariam funções psíquicas a serem integradas. A estrada de tijolos
amarelos seria assim o caminho da individuação, o processo de integração do
self.
A Bruxa Má do Oeste encarnaria a Sombra junguiana, o aspecto
rejeitado da psique que precisa ser confrontado. A morte da bruxa com água (símbolo
universal de purificação) representaria a transformação da energia psíquica
destrutiva em potencial criativo.
No final do filme, a própria Dorothy descobre que sempre teve
o poder de voltar para casa, ecoando o pensamento junguiana de que a totalidade
psíquica não está fora, mas dentro de nós: “Aquilo a que você resiste, persiste. Aquilo
que você aceita, se transforma.” O retorno ao Kansas, agora com nova
consciência, representaria a integração dos arquétipos e a conclusão de
sua jornada de individuação.
A seguir, em duas percepções contemporâneas sobre o filme O
Mágico de Oz, pode-se notar que ele oferece
um terreno extremamente interessante para uma leitura psicanalítica que
transcende o tempo e dialoga com a clínica atual, já que é, em sua essência, um
sonho em forma de narrativa, e os sonhos são o território primordial da
psicanálise. Sua estrutura fantástica, povoada por símbolos, arquétipos e
transformações, permite que ele funcione como um espelho do inconsciente, tanto
individual quanto coletivo.
André Green e o Negativo
André Green, um dos mais influentes psicanalistas franceses
do século XX, conhecido por seu pensamento original e por expandir os limites
da teoria psicanalítica clássica, falecido em 22 de janeiro de 2012 em Paris,
França, introduziu o conceito de representação
negativa, onde o vazio e a ausência também podem comunicar conteúdos
psíquicos. O ambiente da fazenda e seu entorno no Kansas onde mora Dorothy, com
sua paleta cinzenta e atmosfera árida, poderiam ser percebidos como a representação
do negativo, o espaço de ausência simbólica que impulsiona o desejo de Dorothy
por sentido e cor (vida psíquica).
Luiz Alfredo Garcia-Roza e o Sonho como Sintoma
Luiz Alfredo Garcia-Roza, psicanalista, filósofo e escritor
brasileiro, nascido em 16 de setembro de 1936, no Rio de Janeiro e falecido em
16 de abril de 2020 na mesma cidade, foi professor de Filosofia e Teoria
Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde distinguiu-se
por sua produção teórica sobre Freud e a
psicanálise, onde, dentro outras observações, destacou que o sonho é também
um sintoma, uma formação do inconsciente que articula o normal e o
patológico. A narrativa de Oz, nesse sentido, poderia ser vista por Garcia-Roza
como um sintoma onírico que revela tanto o sofrimento quanto a potência
criativa da psique de uma criança como Dorothy.
O Mágico de Oz é muito mais do que um estória infantil: é uma narrativa
onírica carregada de simbolismo e que permite múltiplas leituras
psicanalíticas. Através da lente de Freud, Jung e de autores contemporâneos
como os citados aqui e outros, o filme mostra-se como metáfora do
inconsciente, do desejo e da transformação subjetiva. A análise do
filme oferece não apenas uma compreensão mais profunda da obra do autor L.
Frank Baum e de sua adaptação ao cinema pelas mãos dos principais roteiristas
Noel Langley, Florence Ryerson e Edgar Allan Woolf, mas também uma reflexão
sobre a clínica psicanalítica e os modos de subjetivação na contemporaneidade.
O filme pode ser percebido como um grande sonho simbólico, onde cada elemento
representa um aspecto do inconsciente. Através da lente psicanalítica, O Mágico de Oz pode ser entendido como
uma rica e interessante metáfora sobre processo de autoconhecimento, repressão,
desejo e transformação psíquica de cada indivíduo, ao longo de sua jornada de
vida.
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