O Pensamento Tudo ou Nada

 


O pensamento tudo ou nada, também conhecido como pensamento em preto e branco ou dicotômico é uma distorção cognitiva, onde as experiências são vistas em extremos: sucesso ou fracasso, bom ou ruim, perfeito ou inútil. Não há espaço para o meio. Pode ser definido também  como a tendência de interpretar situações em termos absolutos, ignorando qualquer nuance ou meio termo.

Por exemplo, se o sujeito cometer um único erro, poderá concluir: "Eu falhei completamente". Esse tipo de pensamento também pode ser percebido quando se avalia o valor pessoal em categorias tudo ou nada: um sucesso total ou uma falha completa. Essa mentalidade rígida é especialmente comum em neurose obsessiva, onde ansiedade,  perfeccionismo e pequenos erros parecem catástrofes.

 

Sigmund Freud

Freud não usou o termo “pensamento tudo ou nada”, mas sua teoria sobre os mecanismos de defesa e a formação de sintomas neuróticos oferece uma excelente base para entender esse tipo de pensamento. Segundo Freud, o processo primário, que é característico do inconsciente, opera por meio de polarizações e condensações onde os conteúdos são vividos de forma intensa e sem gradações. Essa linha de pensamento se aproxima da lógica binária do pensamento dicotômico. Freud também descreveu o ideal do ego e o superego como instâncias que podem gerar exigências absolutas, levando o sujeito a se sentir completamente inadequado ou perfeito, sem espaço para ambivalência.

Pela ótica freudiana, o neurótico obsessivo vive um conflito intenso entre sentimentos opostos. No famoso caso do “Homem dos Ratos”, ele descreve como o amor não extingue o ódio, mas apenas o reprime. Esse ódio, mantido no inconsciente, cresce e paralisa a vontade do sujeito.

“Se a um amor intenso se opõe um ódio de força quase equivalente, as consequências imediatas serão certamente uma paralisia parcial da vontade e uma incapacidade de se chegar a uma decisão.” Freud, 1909

O neurótico obsessivo acredita que pensar algo equivale a desejar ou realizar esse algo, gerando angústia, culpa e medo, onde o pensamento deixa de ser uma ferramenta de reflexão e passa a se tornar fonte de sofrimento. Freud comparou os atos obsessivos a práticas religiosas: rituais que o sujeito precisa realizar para evitar punições imaginárias. Esses atos seriam tentativas de controlar o pensamento dicotômico, como se o mundo só pudesse ser seguro se tudo fosse ou estivesse “perfeito” ou “limpo”, levando à compulsiva repetição de atos para “se ver livre” da incerteza.

 

Carl Jung

Jung abordou o pensamento dicotômico de forma mais simbólica e profunda. Para ele, a psique humana é composta por opostos que precisam ser integrados e o conceito de individuação, processo de integração entre consciente e inconsciente,  envolve o reconhecimento e a reconciliação de polaridades internas (como sombra e persona, anima e animus), e percebe o pensamento em extremos como uma manifestação da sombra não integrada, ou seja, aspectos reprimidos da personalidade que, quando não reconhecidos, se projetam no mundo externo como julgamentos rígidos.

A teoria psicanalítica junguiana  também alerta para os perigos da identificação com arquétipos de forma unilateral, como quando alguém se vê apenas como “herói” ou “vítima”, sem reconhecer a multiplicidade de sua psique.

 

Na neurose obsessiva observada na psicanálise, o pensamento dicotômico não apenas é uma distorção cognitiva, mas também uma estrutura defensiva contra o desejo, a culpa e a ambivalência. Como observado, Freud via isso como uma tentativa do ego de se proteger da angústia provocada por conteúdos inconscientes enquanto Jung via a superação dessa polaridade como um caminho para a totalidade psíquica.

A psicanálise, portanto, não vê o pensamento dicotômico como um simples erro cognitivo, mas como um sintoma de conflitos internos não elaborados. A rigidez entre extremos pode ser uma defesa contra a angústia de lidar com a ambivalência, com o desejo contraditório, com o outro dentro de si e o setting analítico pode oferecer ao neurótico obsessivo um espaço para desconstruir essa rigidez entre extremos e a angústia gerada pelo pensamento tudo ou nada usando as ferramentas a seguir:

Desmantelamento das Defesas

A neurose obsessiva é marcada por mecanismos como:

  • Isolamento: separa o afeto da representação, tornando o pensamento frio e racional;
  • Anulação: desfaz um pensamento ou ato inaceitável com outro ato compensatório;
  • Formação reativa: transforma um impulso inaceitável em seu oposto (um exemplo seria a obsessão por limpeza para encobrir “desejos de sujeira”).

A terapia psicanalítica deve então procurar desmantelar(desfazer) essas defesas para que o sujeito possa entrar em contato com seu desejo e com a falta no Outro.

 

Enfrentamento da Ambivalência

O neurótico obsessivo vive em conflito entre ideias opostas: amor e ódio, desejo e culpa. A análise deve permitir que ele reconheça essas contradições como parte de si, em vez de tentar anulá-las com rituais ou pensamentos compulsivos.

 

Remodelamento da Relação com o Saber

O neurótico obsessivo busca o saber absoluto como forma de controle e a  psicanálise subverte essa lógica, mostrando que o saber não elimina a falta — ele a revela. O analista sustenta uma posição de “não saber”, o que desestabiliza a necessidade obsessiva de controle do analisando.

 

Jornada através da Angústia

A terapia psicanalítica conduz o neurótico obsessivo a um encontro com a angústia, não para eliminá-la, mas para atravessá-la, permitindo que ele modifique sua relação com o gozo e com o tempo, saindo da paralisia e da repetição.

 

 Reconhecimento da Castração

O neurótico obsessivo tenta negar a castração (ou a falta) tanto no Outro quanto em si. O setting analítico deve proporcionar ao analisando o reconhecimento dessa falta como constitutiva, permitindo assim uma nova posição subjetiva menos defensiva e mais aberta ao desejo.

 

O objetivo de toda terapia psicanalítica nunca é a  “cura” no sentido médico, mas uma transformação da posição subjetiva: o analisando reconhecer que pode viver com a falta, sem precisar se esconder atrás de rituais, certezas ou polarizações, propondo a mudança na sua posição subjetiva. Isso significa que o analisando passa a se relacionar de forma diferente com seu desejo, com sua falta, com o Outro e com os sintomas que antes o aprisionavam.

A psicanálise não pretende apagar o sintoma sentido pelo analisando, mas sim escutá-lo, pois o sintoma é visto como uma formação de compromisso entre o desejo inconsciente e as exigências do ego, e eliminar o sintoma sem escutar o que diz o analisando seria simplesmente silenciá-lo.

A terapia psicanalítica permite que o sujeito/analisando reconheça sua falta como constitutiva, e não como algo a ser preenchido, desfaça identificações rígidas (como “sou sempre o fracassado” ou “preciso ser perfeito”), acesse o desejo que estava recalcado ou encoberto por defesas e saia da lógica binária (tudo ou nada) e entre na lógica do desejo, que é ambígua, fluida e singular.

No caso específico do neurótico obsessivo, que vive preso a rituais, certezas e polarizações como forma de evitar a angústia da ambivalência, a  análise pode ajudar a tolerar a dúvida sem paralisia, a reconhecer que o desejo não precisa ser controlado ou eliminado e a abandonar a busca por garantias absolutas, conseguindo que o analisando viva com a incompletude, transformando sua relação com ela, existente na vida cotidiana de todos. O neurótico obsessivo pode continuar tendo angústias, desejos contraditórios e pensamentos dicotômicos, mas passa a perceber que isso não o define nem o destrói.

Como bem dizia Jacques Lacan, “A análise não visa a adaptação, mas a travessia.”

 

 

 

 

 

 

 


Comentários

Postagens mais visitadas