Clássicos do Cinema: o Filme Gaslight (1944), a Manipulação e a Identidade
O filme Gaslight, dirigido por George Cukor e estrelado por
Ingrid Bergman e Charles Boyer, é uma obra-prima do suspense psicológico que
transcende seu tempo. Lançado em 1944, o longa narra a história de Paula
Alquist, uma jovem que retorna à casa onde sua tia foi assassinada, apenas para
ser lentamente manipulada por seu marido Gregory, que tenta convencê-la de que
está perdendo a sanidade.
Mais do que um thriller, Gaslight é um estudo profundo sobre
os mecanismos da mente humana, a fragilidade da identidade e os efeitos
devastadores da manipulação emocional. A psicanálise, com seus conceitos sobre
o inconsciente, o trauma, o narcisismo e a formação do eu, oferece um olhar
interessante e aprofundado para se compreender as dinâmicas presentes no filme.
Este artigo propõe uma análise psicanalítica do filme,
citando autores clássicos como Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein e Donald
Winnicott, e também com pensadores contemporâneos como Marie-France Hirigoyen e
Judith Herman. Além disso, exploraremos o papel simbólico dos personagens
secundários e o espaço da casa como representação do inconsciente.
A personagem Paula Alquist e a desconstrução do Eu
Desde o início, Paula (Ingrid Bergman) é apresentada como uma
mulher fragilizada pelo trauma da perda da tia Alice Alquist, uma famosa
cantora de ópera assassinada em casa. Freud, em Além do Princípio do Prazer,
descreve como o trauma não elaborado retorna como repetição. Paula, ao aceitar
viver na mesma casa onde ocorreu o crime, revive inconscientemente o cenário do
trauma. Por exemplo, quando Paula encontra o retrato da tia coberto por um
pano, ela hesita em removê-lo. Esse gesto simboliza a repressão do trauma, ela
evita encarar diretamente a figura materna perdida.
Gregory Anton, vivido pelo ator Charles Boyer, assume o papel
de um superego cruel. Ele constantemente acusa Paula de esquecer coisas, perder
objetos e imaginar sons. Freud descreve o superego como a instância que pune o
eu com base em normas internalizadas. Paula começa a duvidar de si mesma,
sentindo culpa por falhas que não cometeu. No filme, Gregory esconde o broche
de Paula e depois a acusa de tê-lo perdido. Ela se desespera, pedindo desculpas
e se culpando, mesmo sem lembrar de ter feito algo “errado”.
Melanie Klein propôs que o sujeito passa por uma “posição depressiva” ao reconhecer a ambivalência dos objetos amados. Paula ama Gregory, mas também o teme. Essa ambivalência gera culpa e retraimento. Em uma cena marcante, Paula implora para não ser deixada sozinha, mesmo sabendo que Gregory a trata com frieza. Ela tenta preservar o vínculo, mesmo que esse vínculo a destrua.
O personagem Gregory Anton e o Narcisismo Perverso
Gregory é o arquétipo do narcisista perverso. Ele manipula
Paula para que ela duvide da própria sanidade. A psiquiatra, psicanalista e psicoterapeuta
Marie-France Hirigoyen descreve o gaslighting como uma forma de violência
psicológica que mina a realidade da vítima. No filme, as luzes a gás da casa
diminuem de intensidade quando Gregory sobe ao sótão, mas ele nega que isso
esteja acontecendo. Paula percebe a mudança, mas é levada a acreditar que está
imaginando.
Gregory não quer apenas esconder um crime, ele quer apagar
Paula como indivíduo, como pessoa. Freud descreve a pulsão de morte como uma
tendência à destruição. Gregory sabota o ambiente, destrói a autoestima de
Paula e apaga sua história, ao proibir Paula de sair de casa, de receber
visitas e até de tocar música, algo que
a conectava à tia. Ele isola Paula do mundo e de si mesma.
Jacques Lacan propõe que o eu é formado a partir do olhar do outro. Gregory distorce esse olhar, fazendo com que Paula se veja como fraca e doente. Ele é o “Outro” que apaga a identidade dela. Em uma cena cruel, Gregory diz: “Você está doente, Paula. Você precisa de ajuda.” A frase, dita com aparente preocupação, é na verdade uma arma de controle.
Os Personagens Secundários e Suas Funções Psíquicas e
Simbólicas
1. Inspetor
Brian Cameron (ator Joseph Cotten)
Cameron representa o retorno do real. Ele é o “sujeito
suposto saber” lacaniano, aquele que valida a percepção de Paula e rompe o
ciclo de manipulação: quando Cameron
visita Paula e a escuta com atenção, ela começa a recuperar a confiança em si
mesma. Ele é o primeiro a acreditar nela.
2. Nancy (atriz Angela Lansbury)
Nancy, a criada sedutora, é cúmplice passiva de Gregory. Ela
representa o desejo inconsciente masculino e a ameaça à feminilidade de Paula,
flertando abertamente com Gregory na frente de Paula, que se sente humilhada e
insegura. Nancy reforça a posição paranoide de Paula.
3. Alice Alquist (ausente, mas central)
A tia assassinada é a figura materna e protetora. Sua
ausência é o núcleo do trauma de Paula. Ela representa o “objeto perdido”
freudiano. Quando o vestido de palco de Alice, guardado no sótão, e símbolo da
memória reprimida de Paula é encontrado pela personagem, a mesma começa a
recuperar fragmentos de sua história.
A Casa como Espaço Psíquico
A casa no filme Gaslight é um espelho do inconsciente.
Cada cômodo representa uma zona psíquica:
Sótão: Repressão e segredos. É onde Gregory esconde os objetos roubados e onde
Paula é proibida de ir. Quando Paula finalmente sobe ao sótão e descobre os
objetos escondidos, ela rompe com a repressão e confronta o trauma.
Sala de estar: Espaço da manipulação. É onde Gregory encena sua falsa
preocupação.
Quarto: Espaço da vulnerabilidade. Paula sofre crises de ansiedade e insônia.
Luzes a gás: Oscilação da realidade percebida. Representam a
instabilidade psíquica induzida por Gregory.
Situações Abusivas nos Tempos Modernos: O Gaslighting Atual
Embora Gaslight seja uma obra de ficção ambientada na
primeira metade do século XX, os mecanismos de manipulação emocional retratados
no filme são assustadoramente atuais. O termo “gaslighting” tornou-se parte do
vocabulário psicológico moderno, usado para descrever situações em que uma
pessoa é levada a duvidar de sua própria percepção, memória ou sanidade.
Relacionamentos afetivos
Em relacionamentos amorosos, o gaslighting pode se manifestar
de forma sutil e progressiva. O parceiro abusivo nega fatos evidentes, distorce
conversas passadas e invalida os sentimentos da vítima. Frases como “você está
exagerando”, “isso nunca aconteceu” ou “você está ficando louca” são comuns.
2. Ambientes familiares
Pais, mães ou irmãos também podem exercer gaslighting,
especialmente em famílias disfuncionais. A criança ou adolescente é
desacreditado, ridicularizado ou responsabilizado por conflitos que não causou.
Um jovem que cresceu ouvindo que suas emoções eram “drama” ou “frescura”
desenvolveu baixa autoestima e dificuldade de confiar em seus próprios
sentimentos.
3. Espaços profissionais
No ambiente de trabalho, o gaslighting pode ser usado por
chefes ou colegas para minar a confiança de um funcionário. Promessas são
negadas, erros são atribuídos injustamente, e a vítima é isolada ou
desacreditada.
Consequências Psíquicas do Gaslighting
As consequências do gaslighting são profundas e duradouras. A
vítima passa por um processo de desintegração psíquica semelhante ao vivido por
Paula em Gaslight, podendo desenvolver os sintomas abaixo:
1. Ansiedade e depressão
A constante dúvida sobre a própria percepção gera ansiedade
crônica. A vítima vive em estado de alerta, tentando antecipar críticas ou
distorções. Com o tempo, pode desenvolver depressão, sentindo-se impotente e
sem valor.
2. Baixa autoestima e dependência emocional
A manipulação sistemática destrói a autoconfiança. A vítima
passa a depender do agressor para validar suas emoções e decisões, criando um
ciclo de dependência emocional difícil de romper.
3. Dissociação e confusão mental
Em casos extremos, a vítima pode dissociar, ou seja,
desconectar-se da própria experiência emocional como forma de proteção. Isso
leva à confusão mental, dificuldade de tomar decisões e sensação de estar
“perdida”.
Na cena final de Gaslight, Paula confronta Gregory,
agora amarrado e impotente. Ela segura uma faca e simula a mesma manipulação
que sofreu, dizendo que talvez tenha perdido o objeto, que talvez esteja louca.
Mas logo recua, afirmando com firmeza: “Eu não estou louca. Eu nunca estive
louca.”
Esse momento é simbólico. Paula rompe com o ciclo de abuso,
recupera sua voz e assegura sua identidade. É o grito que quebra o silêncio, a
luz que se acende no sótão escuro da mente.
Assim como Paula, milhares de pessoas hoje vivem sob o efeito
do gaslighting, em casa, no trabalho, nas redes sociais. Reconhecer os sinais,
buscar apoio e afirmar a própria realidade são passos fundamentais para romper
com essa forma de violência.
O filme Gaslight é uma narrativa sobre destruição
psíquica, mas também sobre resistência. A psicanálise revela as camadas
profundas da história: os traumas, os desejos, os vínculos ambivalentes e os
mecanismos de defesa. Na cena final, quando Paula confronta Gregory, dizendo
que não o ajudará a se livrar das amarras, ela rompe com o ciclo de submissão.
Sua fala é firme, sua postura é segura. Ela recupera sua voz, e com ela, sua identidade.
O filme permanece atual porque o gaslighting continua
presente em relações abusivas, estruturas de poder e discursos que negam a
realidade do outro. A terapia psicanalítica é, com sua escuta sensível e
capacidade de trazer ao consciente o inconsciente muitas vezes reprimido, ferramenta
poderosa para compreender, e transformar, essas dinâmicas. Ao iluminar os
mecanismos inconscientes do abuso, ajuda a compreender que o sofrimento
psíquico não é fraqueza, é resposta. E que a cura começa quando o sujeito é
escutado, validado e autorizado a existir.
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